sexta-feira, 21 de maio de 2021

Queixa Das Almas Jovens Censuradas


 




Dão-nos um lírio e um canivete 
E uma alma para ir à escola 
Mais um letreiro que promete 
Raízes, hastes e corola 

Dão-nos um mapa imaginário 
Que tem a forma de uma cidade 
Mais um relógio e um calendário 
Onde não vem a nossa idade 

Dão-nos a honra de manequim 
Para dar corda à nossa ausência. 
Dão-nos um prémio de ser assim 
Sem pecado e sem inocência 

Dão-nos um barco e um chapéu 
Para tirarmos o retrato 
Dão-nos bilhetes para o céu 
Levado à cena num teatro 

Penteiam-nos os crânios ermos 
Com as cabeleiras das avós 
Para jamais nos parecermos 
Connosco quando estamos sós 

Dão-nos um bolo que é a história 
Da nossa história sem enredo 
E não nos soa na memória 
Outra palavra que o medo 

Temos fantasmas tão educados 
Que adormecemos no seu ombro 
Somos vazios despovoados 
De personagens de assombro 

Dão-nos a capa do evangelho 
E um pacote de tabaco 
Dão-nos um pente e um espelho 
Pra pentearmos um macaco 

Dão-nos um cravo preso à cabeça 
E uma cabeça presa à cintura 
Para que o corpo não pareça 
A forma da alma que o procura 

Dão-nos um esquife feito de ferro 
Com embutidos de diamante 
Para organizar já o enterro 
Do nosso corpo mais adiante 

Dão-nos um nome e um jornal 
Um avião e um violino 
Mas não nos dão o animal 
Que espeta os cornos no destino 

Dão-nos marujos de papelão 
Com carimbo no passaporte 
Por isso a nossa dimensão 
Não é a vida, nem é a morte.


Natália Correia 
in, Dimensão Encontrada




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