sexta-feira, 19 de abril de 2019

Notre Dame






O que me irrita genuinamente na maioria das críticas/análises que eu vejo sobre Notre Dame é um sentimento profundo de que elas simplesmente não vêem o óbvio, aquilo que uma sociedade pós-iluminista nos treina para não ver, mas que qualquer grupo humano até há 300 anos atrás veria.
Essas duas coisas coisas são: 
A riqueza hermenêutica do evento que quase nos pede que o interpretemos, e a noção de que o mundo funciona principalmente por causa de agências não humanas (sejam elas Deus, deuses, demónios, a alma do mundo ou os espíritos do local).

A catedral de Notre Dame ardeu no primeiro dia da semana santa, o período mais importante do cristianismo que conduz àquilo que, do ponto de vista cristão, é o momento de redenção total da humanidade e a vitória final de Cristo sobre a morte. A torre principal da catedral ardeu e caiu, e algumas notícias apontam para que a reconstrução vá ser difícil por já não haver árvores grandes o suficiente em França para replicar a estrutura. Depois do evento, várias das pessoas mais ricas de França fizeram doações milionárias para a reconstrução da catedral. Tão milionárias que custa sequer imaginar a quantidade de dinheiro. As doações foram seguidas de críticas duras a noções de cultura como separada de projetos opressivos de poder, à distribuição da riqueza, a hábitos caridosos desadequados etc.
O interessante, mais uma vez, é que o evento se perdeu na crítica.

Para pessoas com interesse em tradições religiosas, e principalmente adivinhatórias, estas críticas soam pobres porque falham em reconhecer a voz da própria catedral, do génio do sítio que ardeu e que se expressou no incêndio.
No fundo, do presságio de Notre Dame. 
Qualquer crítica à preocupação das pessoas em ver a catedral a arder quando existem tragédias em Moçambique, quando o ambiente está a ser destruído, quando a Europa se radicaliza à direita, ignora que todas essas críticas estão contidas no próprio evento do fogo. A catedral arde por causa dessas coisas, não apesar dessas coisas, da mesma maneira que o Museu Nacional do Rio de Janeiro arde um mês antes da eleição do Bolsonaro. O incêndio, em ambos os casos, é a crítica mais cerrada ao estado do mundo.

Uma leitura deste tipo implica uma atitude simbólica perante a realidade, a ideia de que ela pode ser interpretada como uma obra de arte, e a ideia de que ela se pode expressar e protestar. O incêndio da catedral transforma-se ele mesmo numa teofania, numa imagem igual a tantas outras imagens religiosas.

É impossível não ver o décimo sexto arcano do tarot na torre de Notre Dame que ruiu, é impossível não associar a destruição da nossa senhora de Paris com as imagens cristãs, abundantes, do coração dilacerado da Virgem Maria. É impossível, a esta luz, não ver a compulsão dos ricos em esconder o presságio. Doações milionárias para disfarçar o facto de que até uma das catedrais mais famosas da Europa já não pode com eles. 

As doações são mal aplicadas porque também elas falham em ler a crítica. A lição do mito da Torre de Babel não é que havia poucos milionários para a reconstruir, é que a sua destruição era em si mesma uma crítica ao ethos de uma sociedade inteira que procurava o domínio do(s) mundo(s). A queda da torre de babel era uma crítica à húbris humana, e se milionários a tivessem tentado reconstruir, a húbris só teria sido amplificada.

A razão porque eu insisto nesta leitura é que o desespero cru das pessoas que gostavam da catedral porque se apaixonaram por ela, pelo seu lugar, talvez até pelo templo de Júpiter sobre o qual foi construída, é injustiçado nas críticas que têm sido feitas. As pessoas não sofrem por Notre Dame *apesar* do estado do mundo, elas sofrem por Notre Dame *por causa* do estado do mundo que ela representa metonimicamente.

A compulsão de restaurar a catedral com todo o dinheiro possível é, naturalmente, um defeito do literalismo que assombra os nossos dias. O que quer que a catedral possa representar para quem faz as doações, a expectativa é que o resultado seja a cura.
Se alguém vê em Notre Dame o “estado da cultura ocidental”, o passo literalista é recuperar a catedral para recuperar a cultura.
Se alguém vê nela o “estado do mundo”, as doações escondem o literalismo de resolver o estado do mundo na reconstrução da catedral.
Mas a questão com o literalismo é que ele é o problema, não a solução.
A compulsão de corrigir o presságio fazendo doações revela a ideia (puramente capitalista ocidental) de que atirar dinheiro a um problema com força suficiente faz com que o problema vá embora. Deixarmo-nos cair nesta leitura é deixar que a catedral tenha ardido em vão, é recusar a sua mensagem, a sua agência no fogo em si.

Júpiter, senhor de Notre Dame antes da Virgem Maria, viaja agora por um signo de fogo no céu.
Zeus Xenos, dos estrangeiros, que ofendemos com o aumento da xenofobia na Europa.
Zeus Phyxios, do refúgio, que ofendemos com a nossa gestão trágica da crise de refugiados.
Zeus Laiotes, do povo, que ofendemos com o nosso desprezo crescente pela democracia.
Zeus Labrandeus, furioso, que nos relembra que não podemos continuar a deixar o mundo a ferro e fogo impunemente.
Zeus Semaleos, dador de sinais, sinais que não podemos continuar a ignorar.


Simão Cortês



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