Numa das suas mais belas prosas poética, Eugénio de Andrade perguntava:
“Envelhecer não é assim tão simples, por mais que o digam. Quantos dias de sol o declínio nos reserva? Por quanto tempo poderemos amá-los, a esses jovens, sem os ofender? Esta alegria de noutros corpos sermos ainda alguma juventude, como guardá-la, sem a degradar?”.
Prisioneiro, ainda e para sempre!, de fascinada gratidão por quem Óscar Lopes descreveu como o poeta solar, o professor de Antropologia Médica sorri, em face de tamanha idealização da juventude. E de uma teoria, no mínimo desencantada, do envelhecimento.
Porque encará-lo como um doloroso recuo, passo a passo, rumo ao nada a que a vida por momentos nos surripiou; abençoado, aqui e ali, por umas horas soalheiras, o riso dos netos ou memórias ternurentas, não é justo.
Mas prefiro vasculhar o travo a culpa nostálgica que se desprende do monólogo do Eugénio.
Dir-me-ão que fala especificamente de amor. Concedo.
Poderíamos discutir qual, não tenho dele visão essencialista, que o transforme numa entidade abstracta, alheia a diferentes culturas e momentos históricos. Também não me atardarei em questões de léxico. Na Idade Média, por exemplo, numa das cortes ocitanas em que nasceu o amor cortês, bastava o estatuto de solteiro – e não de bom rapaz… - para ser considerado jovem, ao arrepio da nossa intuitiva certeza - juventude e B.J. andam sempre de mãos dadas.
Caminhos que me são queridos, hoje considero adequado trilhar outros.
Quando o Eugénio se interroga sobre a eventual ofensa aos jovens, cristaliza na relação amorosa uma angústia mais geral, agressiva e recente – não os ofenderá a nossa mera existência?
Tomemos os gregos.
Quando Alcibíades se lamenta por não ter seduzido Sócrates, apesar de o saber sensível à sua decantada beleza, o despeito não belisca a admiração sentida pelo filósofo. E pela razão de gentil recusa - a beleza do corpo não passava de um degrau na busca da Beleza e do Bem.
Sócrates e Alcibíades, sem esquecer Platão que os escreveu, ficariam surpresos com o que hoje acontece. Beleza e Juventude valem por si, ponto final. Traduzem um verdadeiro paradigma, no sentido original do termo – modelo, normas a seguir por um grupo. Seguir e perseguir, acrescentaria eu! A nostalgia de transcendência perdeu-se pelo caminho. A beleza não tenciona levantar voo da dimensão física, numa sociedade que privilegia a aparência em detrimento da essência, vive como peixe na água, transformada num produto que se vende bem e ajuda a vender os outros. (Escusado será dizer que com um indiscutível efeito de género, os homens podem trocar o adjectivo belo por interessante sem grandes consequências. Ou até com vantagens no mercado da oferta e da procura.) No caso da juventude, arrisco-me a dizer que a auto-satisfação é ainda maior, a inevitabilidade do envelhecimento só lhe acentua a aura ameaçadora, apetece rosnar entredentes como ao Satanás de antanho – vade retro.
Qual foi o nosso trajecto?
A partir da década de sessenta, a juventude não se limitou a monopolizar a beleza sedutora, de um momento para o outro, os filhos da guerra adoptavam existências e ideologias em absoluto diversas das dos pais. Não raro, teoricamente… Por exemplo, os relatos de educadores assustados e furiosos, por se surpreenderem a repetir processos que tinham jurado exilar, obrigam-nos a matizar os discursos. Ou o salve-se quem puder de Wall Street!, a velha frase de Sartre espreita dos bastidores – “os universitários são revolucionários até se formarem. Depois vão ganhar a vida.” Mas a rebelião de alguns, por vezes comodista e burguesa, e a estranheza defensiva de outros, embalaram expressão clássica – vivíamos um conflito de gerações. Decreto grandiloquente, o mais das vezes apenas traduziu vivência aflita de contraste desejável.
Pobre da sociedade em que os filhos não passam de fotocópias ou pseudópodes dos pais…
Mas se em termos de psicologia do desenvolvimento o alarido foi enorme, e nos deixou com a “invenção” da adolescência como estádio autónomo, merecedor da célebre moratória de Eriksson e do olhar guloso dos publicitários, que através dela alvejavam os bolsos parentais, o imperialismo estético e a recusa do envelhecimento não mais pararam de se acentuar.
Numa sociedade capitalista rendida à aparência, os objectivos são lógicos – guerra sem quartel às rugas e ao envelhecimento em geral, encarado como derrota e saída de cena, merecedor até de xenofobia encapotada.Lembremos o novo diagnóstico de analfabetos funcionais - de que vale saber ler, escrever e contar, à boa maneira salazarista, se não dominamos Excel, PDF e Power Point?
Em termos gerais, vivemos numa cultura que não incita as gentes a envelhecerem bem, pacificadas, cuidando-se física e psicologicamente, mas a negarem esse envelhecimento com todas as forças e recursos económicos.
Efeito de género?
Claro que continua presente, nenhum de nós terá o desplante de afirmar que a pressão sobre os homens é equivalente à sofrida pelas mulheres.
Mas efeito de classe também!, quem trabalha de sol a sol e namora montras envelhece mais cedo e sem grandes angústias existenciais.
De nada valeriam, a preocupação pela sobrevivência a curto prazo diminui a esperança de vida e o vasculhar do horizonte, a pergunta clássica de psi, “como se imagina daqui a dez anos?”, é frequente surgir resposta risonha de tão trágica – “nem sei se lá chego”.
Alguém definia a Estatística como a Ciência de mentir através dos factos e não serei eu a nega-lo, cada noite de análise de resultados eleitorais serve de álibi, os mesmos números justificam declarações inflamadas de vitória de todos os quadrantes, empurrando o espectador para uma acefalia que nada fica a dever à semeada pelos intervalos publicitários.
Mas há dados que até a Houdini resistiriam, quando os defrontamos título de velha canção dos Dire Straits nos invade o espírito – solid rock. Assim são os demográficos, esta sociedade envelhece. Na minha opinião, inexoravelmente. O que não permite descurar a obrigação ética de promover todas as medidas que incentivem a natalidade, protejam a gravidez adolescente e evitem a xenofobia para os que vieram de longe, de muito longe, o que eles andaram para aqui chegar e – com sorte… - trabalhar.
Mas os factos e as previsões aí estão – menos jovens e cada vez mais idosos, o sonho de eternas juventudes dá lugar a quotidianos centrados em longos e às vezes penosos ocasos. A Ciência em geral e a Medicina em particular aprenderam no século XX truques muito eficazes para brincadeira favorita – trocar as voltas à Mãe Natureza e ao seu braço de foice armado, a selecção natural.
Vivemos mais? Sim. Melhor? Nem sempre.
Amiúde nem sequer tão bem, a quantidade não garantiu a qualidade.
En passant, lembro-lhes que estão obrigados a segredo profissional, não quero sair desta sessão olhando por cima do ombro, receoso de uma qualquer brigada da ASAE.
E se eu o afirmo baseado nos canhenhos de Antropologia Médica, na escuta de psiquiatra e em anos e nódoas negras vividos, vocês confirmam-no todos os dias na prática. Vocês; que são a primeira linha de defesa da Clínica e da organização institucional; e a última contra uma Medicina fascinada pela super-especialização, que transforma o Doente num somatório de órgãos e sistemas. Analisado até à sua e nossa exaustão, esquecendo a síntese que o devolve à condição de Sujeito de pleno direito.
Na realidade, e aqui entre nós, também a Medicina alimentou sonhos adolescentes de eterna juventude. E assim reforçou um paradigma popular com outro, científico, no sentido que Kuhn lhe deu. Qualquer historiador da nossa arte, e a palavra não é casual ou descuidada, vos dirá que a explosão de terapêuticas, surgida em meados do século XX, gerou uma vertigem optimista de omnipotência, que sobretudo o VIH, a doença oncológica e as demências se encarregaram de travar. Mas tal soberba teve ecos fatais no ensino, com os jovens médicos a beneficiarem de uma formação a meio caminho entre a clínica e a ciência, à custa das horas dedicadas ao que um colega americano crismou de bricabraque psicológico. Da super-especialização, vista como o futuro adequado aos melhores, em contraste com uma Medicina Geral e Familiar subalternizada, porto de refúgio para não dizer refugo, da sua incapacidade de manter uma visão holística do Doente, já falei. Mas também o mais profundo conceito da profissão gemeu sob o jugo dessa ideologia, as duas faces da Medicina viraram-se as costas como as das moedas, o cuidar foi entregue – com mal disfarçado alívio… - a outros especialistas, permitindo-nos o luxo de apenas nos concentrarmos na busca do El Dorado da cura.
Da cura, mas de humildade, a que tal Medicina vem sendo sujeita não preciso, como disse, falar-vos, são vocês a sofrer-lhe as agruras. Depois de a maioria ter sido formada quase exclusivamente para lidar com a doença aguda, eis-vos emaranhados nas crónicas e no seu cortejo de queixas itinerantes, efeitos colaterais de terapias, sofrimento que jamais se deixará enjaular na palavra dor. Aceitem a compaixão, no sentido original do termo, que como psiquiatra vos ofereço, a doença psíquica também me ensinou que o ego sofre rudemente com visitas raras de acontecimento que torna a separação despedida de corações ligeiros – a alta.
A Medicina Científica foi obrigada a crescer e envelhecer.
Não sentindo o bafo da grande ceifeira, ela mesma funciona como seguro de vida da profissão, mas valorizando a sageza, o passo em frente cauteloso e multidisciplinar, em detrimento das águas complacentes em que se mirava Narciso. Não curaremos todos; não os tornaremos imortais; não seremos capazes de lhes assegurar a felicidade; não conseguiremos evitar a influência de variáveis sociais. De uma vez por todas é imperioso que o Poder o entenda - a busca do Santo Graal da Saúde não pode ser levada a cabo apenas pelos seus profissionais. As consequências da crise, já evidentes nos planos físico e psíquico, provam-no de modo insofismável. E por isso, é bom que as promessas dos políticos, sobretudo no que aos Cuidados Primários diz respeito, não se limitem a voar de bocas habituadas a campanhas eleitorais e deixem os tinteiros rumo à legislação. Sob pena de uma Democracia tão jovem como a nossa poder acumular fissuras de sistema envelhecido, à mercê dos que dela exigem os direitos para lhe planearem o enterro.
Também nós, os psis, fomos obrigados a calibrar o tiro.
Fascinados pelo mergulho freudiano no inconsciente, nas experiências precoces e respectivas impressões digitais, assoberbados pela tarefa de manter na corrida frenética em que vivemos gente sem tempo para se meditar, nostálgicos da bala dourada da farmácia, que promete tudo resolver pelo reequilíbrio de mediadores químicos, olimpicamente alheios às narrativas de vida, tentados a resolver sintomas isolados incapacitantes, numa espécie de “psiquiatria de órgão”, que ignora a vida mental no seu todo, o envelhecimento não nos atrai particularmente.
Se Freud desaconselhava a psicanálise depois da meia-idade, pela angústia que podia provocar no paciente, alguns de nós, na melhor das intenções, encaram o trabalho com os mais velhos apenas no registo da psicoterapia de apoio, quando não no da mera escuta empática.
Trata-se de um erro crasso, por clínica e cientificamente comprovado.
As novas tecnologias e a investigação que sugeriram, estilhaçaram as velhas teorias sobre a imutabilidade melancólica dos nossos neurónios, a adaptação dos seus circuitos continua ao longo da vida. (Para o melhor e o pior!, mas não é o momento de nos debruçarmos sobre as relações juvenis que mantemos com e através de Net, sms, mails e robótica, bastará admitir que pensamos, sentimos e avaliamos eticamente de forma diversa, duas ou três décadas volvidas.)
Mas essa neuro-plasticidade, verdadeira infância guardada em neurónios que envelhecem, não acarreta apenas vantagens.
Ouçamos Pascual-Leone:
“Além de ser o mecanismo do desenvolvimento e da aprendizagem, a plasticidade pode ser causa de patologia.”.
Porquê? Porque quanto mais o doente se concentra nos sintomas, mais profundamente eles ficam gravados nos seus circuitos neuronais, diz Nicholas Carr.
Mas mesmo fora da patologia a mensagem é clara, segundo Doidge, “se deixamos de exercitar as nossas capacidades mentais não nos limitamos a esquecê-las: o mapa espacial do cérebro que lhes pertence é ocupado pelas que as substituem”, num processo apelidado, com indiscutível humor, de “sobrevivência dos mais ocupados”.
E por isso o envelhecimento activo, melhor ainda, o envelhecimento saudável!, depende tanto da caminhada à beira-mar como da frequência de uma universidade sénior ou dos benefícios de uma relação terapêutica que não sacrifica a ambição no altar do bilhete de identidade.
A reificação da juventude e da beleza continua de boa saúde? É verdade.
Basta lançar uma vista de olhos por revistas em salas de espera, grávidas de discursos gémeos de tanta gente que pede ao bisturi que atrase os ponteiros do relógio do envelhecimento; ver na capa da Vanity Fair a fotografia do secretário do Papa com a legenda “ser bonito não é pecado”; escutar a amargura de quem foi convidado a passar à pré-reforma porque a empresa necessita de sangue e imagem novos.
E nós?
Fomos capazes de sacudir um paradigma cartesiano, que tudo prometia ao corpo e lhe impunha fronteiras na relação com o espírito; batemo-nos hoje por outro, que preconiza a abordagem psicossomática e holística da pessoa.
A Medicina não nasceu para vencer a morte, Asclépio foi fulminado por Zeus, alegadamente por o conseguir e de tal feito se gabar. Não, não nascemos para matar a morte. Nem sequer para a recusar, por encarniçamento terapêutico, a vidas que já se apagaram.
Nascemos para curar e cuidar os vivos.
A juventude não é eterna, a velhice já não é breve, a adolescência espalha-se pela infância; e por uma adultícia pouco segura de possuir a maturidade... Criámos para as nossas vidas fronteiras tão artificiais como as que geraram horas e minutos à custa de estações do ano, colheitas e fases da lua. A medicina holística não aborda a pessoa inteira num dado momento, aborda-a inteira porque lhe escuta os momentos… de uma vida inteira. E assim cala o murmúrio sedutor de uma qualquer fonte da eterna juventude!
E a beleza, dir-me-ão? A física?
A sua exigência, numa sociedade rendida à imagem, trar-nos-á clientes, e repito – clientes, mas também questões éticas – onde pára a intervenção terapêutica e começa a cedência ao capricho ou à anemia das nossas contas bancárias?
Devolvo a palavra a Eugénio de Andrade:
“Porque a beleza, ou é esta entrega a quem de súbito a descobre, ou se esconde, cruel, a quem faz da sua procura uma perseguição de carniceiro”.
Estou de acordo.
Os Antigos diziam dos médicos que eram mestres de pensar o corpo, gosto de acreditar que podemos ajudar outros a fazerem o mesmo. E assim descobrirem a beleza, não apenas física, que em todos nós brilha, inacessível a pressas de talhante. Mas disposta a conceder o benefício da dúvida a médico e doente capazes de tocar a consulta a quatro mãos.
Júlio Machado Vaz
Sem comentários:
Enviar um comentário