quarta-feira, 11 de julho de 2018

Segunda Elegia de Natal





Teria hoje dezasseis anos
a nossa filha que nasceu morta
Só no silêncio a recordamos
tanto a sentimos à nossa volta

Ano após ano sempre em silêncio
emocionados fomos seguindo
todos os passos de um crescimento
no seu sorriso que nunca vimos

Subiu aos ferros da nossa cama
sem termos medo de que tombasse
Tocou nos livros que fui comprando
sem que rasgasse nem uma página

Andou connosco por longe e perto
sem ter saído do seu abrigo
Hoje intercede pelos meus netos
que nem suspeitam ser seus sobrinhos

Não teve nome    Não há retrato
E de tais dados não precisamos
Mesmo sem rosto cresceu-lhe o rasto
ao longo destes dezasseis anos

Senta-se à mesa da consoada
numa cadeira que não existe
mas cujas tábuas trazem a marca
das mãos aladas de Jesus Cristo

Agora vejo-a da tua altura
com uma fita sobre o cabelo
Vem ilibar-me de toda a culpa
dentro dos versos em que a descrevo

É tão sensata que até parece
ser mais adulta que nós os dois
Os nossos laços ela os aperta
Mal-entendidos ela os transpõe

É ela sempre quem nos reúne
Mais porventura que estando viva
Que importam chamas luas ou lumes
perante o brilho daquela cinza

Da sua morte nunca falamos
Ei-la a velar-nos do alto céu
E já tem hoje dezasseis anos
a nossa filha que não morreu.


David Mourão Ferreira





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