sexta-feira, 20 de julho de 2018

A TRISTEZA É TAMBÉM UMA ONDA






Borgeby Gard, Fladie, Suécia 
12 de Agosto de 1904

Venho outra vez palestrar consigo, meu prezado senhor Kappus, se bem que pouco tenha a dizer-lhe que possa ajudá-lo ou ser-lhe útil. Diz-me que múltiplas e enormes tristezas cruzaram o seu caminho e que a passagem dessas tristezas bastou para o abalar. Peço-lhe que se interrogue e que veja se essas enormes tristezas não atravessaram as regiões mais profundas de si mesmo, se não modificaram muitas coisas em si, se nenhum ponto do seu ser se transformou ao contacto. Apenas são cruéis e perigosas as tristezas que passeamos na multidão para que esta lhes dê remédio e que se parecem a essas moléstia, negligentemente tratadas, que somem num momento para retornar em seguida, mais perigosas do que nunca. Estas acumulam-se em nós e também são vida, mas vida que não foi vivida, vida desprezada e como que abandonada, mas que nem por isso deixas às vezes de ser fatal. Se a nossa vista alcançasse para além dos limites do conhecimento, e mesmo para além do halo das nossas intuições, talvez acolhêssemos as nossas melancolias com mais confiança ainda do que as nossas alegrias. As tristezas são auroras novas em que o desconhecido nos visita. A alma, assustada e temerosa, cala-se, tudo se afasta, faz-se uma grande tranquilidade e o incognoscível surge em silêncio.

Quase todas as nossas tristezas, são acredito, estados de tensão que experimentamos como que tolhidos, assustados por já não nos sentirmos viver. Estamos sós com esse desconhecido que penetrou em nós, privados de tudo aquilo a que estávamos habituados a confiar-nos. Pelejamos como se lutássemos com uma corrente de que tivéssemos de suportar as ondas. A tristeza é também uma onda. O desconhecido uniu-se a nós, penetrou no âmago do nosso coração, e já nem sequer está no nosso coração, pois se mesclou com o nosso sangue e assim ignoramos o que se passou. Seria fácil fazerem-nos crer que não se passou nada. E, todavia, eis-nos transformados como uma casa pela presença de um hóspede. Não podemos dizer quem chegou, não o saberemos talvez nunca, mas muitos sinais nos indicam que foi o futuro que, deste modo, entrou em nós para se transformar na nossa substância, muito antes de tomar forma. Eis porque a solidão e o recolhimento são tão importantes quando estamos melancólicos. Esse instante aparentemente oco, esse instante de tensão que o futuro nos penetra, está infinitamente mais perto da existência do que aquele outro instante em que se nos impõe do exterior, em pleno tumulto e como que por acaso. Quanto mais silenciosos, pacientes e recolhidos formos nas nossas melancolias, de forma mais eficaz o desconhecido penetrará em nós. O desconhecido é o nosso bem. Metamorfoseia-se na carne do nosso destino, ligando-nos a este quando foge de nós para se realizar, isto é, para se projetar no cosmos. E é preciso que assim seja. É preciso – e é nisto que consiste a nossa evolução – que jamais encontremos nada que não nos pertença há já muito tempo. […]

Como poderia a nossa condição não ser difícil?
E para regressarmos à solidão, torna-se-nos cada vez mais patente que a solidão não é uma coisa que possamos aceitar ou recusar ao nosso talante. Podemos, é indubitável, enganar-nos a nós próprios e fazer de conta que não é assim. Porém, nada mais. Como seria preferível entender que somos sempre solidão e partir desta verdade! Sem dúvida, esta certeza provocar-nos-ia vertigens porque todos os horizontes familiares sumiriam, tudo nos pareceria longínquo e o longínquo recuaria até o infinito. Só um homem que, bruscamente e sem ser avisado, fosse transportado do seu quarto para o alto de uma montanha, sentiria qualquer coisa de parecido: uma insegurança sem par, um abalo tal, oriundo de uma força desconhecida, que seria quase capaz de o destruir. […] Devemos aceitar a nossa vida tão completamente quanto possível. Tudo, mesmo o inconcebível, deve tornar-se possível. No fundo, a única valentia que nos é pedida é a de fazermos face ao singular, ao maravilhoso, ao extraordinário que se nos deparar. Custou bem caro à vida que os homens, neste ponto, tivessem sido débeis.
Essa vida que chamam imaginária, esse cosmos que pretendem sobrenatural, a morte, todas estas coisas nos são, no fundo, consubstanciais, mas foram expelidas da vida por uma defesa diária, a tal ponto que os sentidos que teriam podido apreendê-las se atrofiaram. O medo do sobrenatural não empobreceu somente a existência do indivíduo, mas ainda as relações de homem para homem, subtraindo-as ao rio das possibilidades infinitas para as colocar a salvo, em qualquer ponto seguro das margens. Não é só devido à indolência que estas relações são indizìvelmente monótonas e se reproduzem sem alternativas: é também porque o homem teme as novidades que não sente à altura de enfrentar e cujo epílogo é imprevisível. Só aquele que espera tudo, que não exclui nada, nem mesmo o mistério viverá, como fazendo parte da vida, as relações de homem para homem e, indo ao mesmo tempo até à fronteira da sua própria vida. Se concebermos a vida do indivíduo como um quarto maior ou menor, torna-se evidente que quase todos aprendem apenas a conhecer um canto desse quarto, aquele local em frente da janela, aquele raio em que se movem e onde encontram uma relativa segurança. Quanto mais humana não é, porém, aquela insegurança, cheia de perigos, que leva os prisioneiros, nas histórias de Poe, a explorar com os dedos as suas horríveis masmorras, a tudo conhecer dos terrores indescritíveis que resultam dessa curiosidade! Mas nós não somos prisioneiros. Nenhum alçapão, nenhuma armadilha nos ameaça. Não temos nada a recear. Fomos colocados na vida por ser a vida o elemento que mais nos convém. Uma adaptação milenária faz com que nos pareçamos com o cosmos, a tal ponto que, se permanecêssemos calmos, mal nos distinguiríamos, por um feliz mimetismo, do que nos cerca. Não temos nenhuma razão de desconfiar do universo, porque este não nos é contrário. Se existem terrores, esses terrores são os nossos; se há abismos, são os nossos abismos; se há perigos, devemos esforçar-nos por amá-los. Se construirmos a nossa existência sobre o lema de que devemos sempre dar preferência ao mais difícil, tudo o que ainda hoje nos parece singular se tornará familiar e fiel. Como olvidar esses mitos antigos que se encontram no início da história de todos os povos, os mitos dos dragões que, no momento supremo, se transformam em princesas? Todos os dragões da nossa existência são talvez princesas que esperam ver-nos, um dia, belos e audazes. Todas as coisas assustadoras não são mais, talvez, do que coisas indefesas que esperam que as socorramos [...]

Não se observe muito. Evite tirar conclusões sumárias do que se passa em si. Abandone-se e não raciocine. Caso contrário, seria levado a censurar o seu próprio passado (sob o ângulo moral, entende-se…), porque o passado é em parte responsável do que hoje lhe acontece. […]
Se me permite, dir-lhe-ei ainda uma coisa: não acredite que sob estas palavras simples e tranquilas, que às vezes o acalmam, aquele que se esforça por reconforta-lo viva sem empecilhos. A sua existência não está isenta de penas e tristezas que o deixam muito aquém delas. Mas, se assim não fosse, nunca teria podido achar estas palavras.


Rainer Maria Rilke
in, Cartas A Um Jovem Poeta




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