Só agora, a curta distância de morrer, consigo ver como é inútil seguir o que se passa no Mundo na esperança de o entender, defender ou salvar, e como é admirável o instinto de sobrevivência daqueles para quem a vida termina à porta do seu quintal, renunciando, sem culpa, a toda a dor que lhes trazem os jornais.
Não serão tão pródigos a contribuir para o destino, bom ou mau, da humanidade, mas
conseguem ao menos viver com alegria e saúde suficientes para espalharem um pouco de amor à sua volta e, sobretudo, vencer a agonia que, mais tarde ou mais cedo, acaba por paralisar quem se envolve.
(Tu sabes: há quem goste de trazer o Mundo no bolso para não se arriscar a perder pitada, inteirando-se a cada minuto das guerras, das falências, da corrupção e das catástrofes, orgulhosos dessa actualização permanente e brutalizando, diariamente, a própria sensibilidade.)
Não sei se é egoísmo, instinto de sobrevivência, sabedoria ou o amor a nós que Deus exige, mas sei que,
a partir de certa altura, o corte impõe-se: o mundo ou nós.
São menos, mas mais inteligentes, os que defendem que
não há inocentes e que todos, sem excepção, do pastor de província à dona de casa suburbana,
são responsáveis por tudo o que de mau acontece no globo, insinuando que a a ignorância é o verdadeiro criminoso, e que só a cultura, essa asa libertadora, com o seu livro de receitas infinito, pode fazer com que derrotemos a maldade dos homens, sobrevivamos ao medo que eles nos fazem ou à nossa tragédia íntima.
Não é isso que se nota.
À medida que vão descobrindo antídotos prodigiosos para combater a guerra, a doença e os abusos,
a humanidade está cada vez mais doente - e não porque cometa crimes mais graves do que cometeu no passado, mas por ter deles mais consciência.
E os hesitantes, como eu, por clemência divina ou natural desprendimento, ganham subitamente alguma lucidez, uma espécie de derradeira graça que lhes permite
ver, claramente, a debilidade das teorias e a infantilidade das convicções.
Na verdade, à hora da morte quer-se pouca coisa: que Deus nos perdoe, que alguém nos dê a mão antes de partirmos e que a nossa passagem por este mundo tenha, pelo menos, comovido alguém. E o sentimento de humildade é tal que não precisamos de muitos amigos a chorar-nos ou a recordar-nos, mas alguém, apenas alguém, que possa sentir a nossa falta: uma criança ou um cão, por exemplo.
Nessa antecâmara, basta que um simples gato se enrosque no nosso corpo moribundo, aproveitando a última temperatura,
para conseguirmos perdoar todo o mal que nos fizeram ou fizemos aos outros, e partir em paz.
Penso que é, indulgentemente, perante a morte, que o homem recebe finalmente o dom do Conhecimento, e com ele a aceitação de alguns paradoxos, de que, por tiques da lógica ou vícios culturais, toda a vida suspeitou: entre eles,
a certeza de que a notícia incessante dos horrores infligidos à humanidade, em lugar de nos tornar sábios, previdentes ou melhores pessoas, nos endurece o coração e nos torna mais e mais indiferentes.
Outra, é que esse mesmo Conhecimento, edifício que os homens baptizaram grosseiramente de cultura escolhendo e bem uma metáfora agrícola, com toda a sua sorte de assobios doces ou perversos, sonoros ou coloridos, só consegue, no final, provar-nos uma coisa:
que nada podemos contra a vida e contra a morte, contra Deus e contra nós.
Stig Daggerman, um dos escritores de culto da juventude sueca, suicidou-se na garagem de sua casa, aos 31 anos, depois de deixar escrito, entre outras coisas, que tanto o crápula como a infeliz têm o mesmo fim que o sábio.
Não penses que te escreve uma pacóvia. Doutorei-me em Dusseldorf a pedido de meu pai, engenheiro-químico que se fez do nada, especializei-me em membranas de filtragem hidráulica, falo quatro línguas, dei aulas de Bíblia a almas errantes e a donas de casa desocupadas, estudei a vida dos santos e manifestei, em solteira, interesses herdados do meu avô e semelhantes entre si: História, Arqueologia, Etimologia.
Entretanto, vi todos os filmes que um tio modernaço, à socapa, me recomendava, equilibrada nos saltos da minha mãe e com a boca pintada de batom: O Sétimo Selo, do Bergman, o Pierrot, le Fou, do Godard, O Grito, de Antonioni. E os livros: das histórias dos Grimm ao Le Soulier de Satin, do Céline, lia tudo o que, na primeira frase, conseguia prender-me.
Sim, posso afirmar que vi, li e ouvi quase tudo o que meia-dúzia de criaturas neuróticas, abandalhadas e míopes, que, por saberem mais do que os outros, se crêem deuses, consideram ser as mais belas realizações do homem: as cores de Giotto, os voos de Nureyev, os caprichos de Béjart, os guinchos do Nô.
Mas nada disso, vejo-o agora, me foi vital.
Abriu-me os olhos, educou-me, emprestou outra dimensão à minha vida, tornou-me uma companhia mais interessante e solicitada, mas toda a consciência que a cultura me trouxe acabou por me condenar.
Nunca mais pude iludir-me e, como se não bastasse, de tanto refinar os padrões estéticos e dilatar o meu grau de exigência,
em vez de me aproximar das pessoas, que deveria ser a principal finalidade da cultura, isolei-me.
Em pequena, acredita, fui o que se pode chamar uma promessa.
Com dez anos tocava piano de improviso e rimava sem falhar a métrica, e desenhava cavalos tão bem que um dia um mestre famoso, visitando a minha escola, inclinou-se mais de cinco minutos sobre a minha carteira, estudando-me o traço.
Pois o Lucas, com a tão sua submissão a figurinos, conseguiu transformar os meus versos em tartes e os meus cavalos em centros de mesa, tornando a promessa que fui num perjúrio infame.
E do que sinto a falta e estimo como um tesouro perdido não é de um livro, de um filme, de uma tela ou de uma ária, mas do abraço dos meus filhos, sentido, ou do hálito do Lucas, que nem sequer era bom.
Rita Ferro
in, "És Meu"