domingo, 2 de março de 2014
Bom Caminho
Há dias tive a honra (e o orgulho) de apresentar o primeiro livro da viajante-escritora-peregrina Fausta Cardoso Pereira, "Bom Caminho", edição da Planeta.
Se não tiverem paciência para me ler, entendo muito bem, mas não deixem de ler a Fausta.
*
Este é um livro corajoso, para além da experiência de que se pode dizer nem tudo são rosas na vida de um viajante; e é falso o livro e o viajante que exorte o contrário. Há o exercício físico, psicológico de superação, tanto quanto há o de viver para contar. Fausta dita logo as regras do jogo, do xadrez. Não desvenda logo, porém. Baralha, parte e dá como só fazem os mestres. Cita, com propriedade, Charles Handy, por exemplo, como poderia citar o peregrino francês Charles Baudelaire que no “Spleen de Paris” confessou sofrer de horror do domicílio como impulso para a viagem física. É sincera e pragmática falando do obstáculo do código do Trabalho como impedimento, tal como eu podia falar do Amor conjugal e paternal como grande questão para me fazer mais vezes e mais demoradamente ao caminho. Um voto de sinceridade implacável, digamos assim, de capa e espada. Segue ainda os princípios de uma grande viajante e escritora da era moderna Jan Morris de que quando viaja se limita a deixar as coisas acontecerem.
Reparem que ainda não sabemos o que a motivou, o que a move na vida. Fala do perdão e da salvação que levaram os antigos a caminhar semanas infindas, ao frio, à fome, à sede, à dor, à privação e à provação dos arquétipos religiosos. Será o masoquismo que conduz à libertação? Eu que faço parte dos viajantes hedonistas e epicuristas não me vejo a seguir estes passos, mas já o fiz, segundo os princípio do repórter de dar o corpo (e o espírito) ao manifesto como única forma plausível de viver para contar. E depois oxalá chegue a arte, enquanto se trabalha.
Um parêntesis histórico e cultural. Os árabes dizem que a arte de viajar se faz a andar e a ver. E é este um dos grandes tesouros deste livro.
Fala-se então de renúncia ao conforto como forma de recuo no tempo e de desconstrução, bela e moderna palavra de reconhecimento do que de facto precisamos para viver e sermos felizes ou pelo menos menos descontentes. Trata-se aqui de um despojamento circunstancial mas sentido.
Entramos agora no domínio do turismo espiritual. O que leva Fausta e viagens da sua estirpe a fazer este tipo de incursões ou excursões e a lugares de forte carga esotérica? Que estrela perseguem? Que bençãos recebem? Que força, vibração, energia se desprende da terra, do ar, do ígneo, do éter ou da imaginação a quem as viagens fazem tanto bem? A que hierarquia social (e religiosa) pertence a nossa autora? Será budista de Inverno e nudista de Verão como eu? Que procura? Não se encontra o que se procura mas o que se encontra já se sabe. Gosto particularmente do avisado mantra de sua autoria que diz "andar-pensar-ser feliz assim". E de uma confissão à mesa com um amigo de que precisava de abrandar e de encontrar espaço na cabeça. Fez-me bem ler isto e assumo que sou fã de livros de auto ajuda e cursos de mindfulness. Lidar com o silêncio é um grande desafio e com as perguntas e respostas sem outro interlocutor a não ser nós próprios. Podia falar-vos disto. De como me faz falta uma asa de amor para as viagens a quem possa dizer olhamos juntos na mesma direcção sem eufemismos e diários íntimos de angústias de viajante solitário, e como isto mexe comigo.
A certa altura parece querer provar a alguém a sua capacidade de superação. Os desafios sucedem-se como fazer mais flexões ou levantar mais peso nos halteres. Mas transgredir é a palavra de força. O Caminho também é um Descaminho de Santiago… como o deixou escrito o holandês Cees Noteboom. O meu homónimo Tiago (Maior) foi o primeiro a cruzar este caminho, 40 anos d. C. São então relatados com paixão episódios e milagres da longa História como um perto de Iria Flávia, terra de nascimento desse vulto das letras galegas, Camilo José Cela.
Entra então em cena a historiadora, pesquisadora e a tese da linha de defesa católica, uma espécie de linhas de torres para travar as investidas sarracenas. Faz sentido e de certa maneira retira a aura mística ao lugar no sentido de lhe dar uma natureza bélica.
Uma pergunta agora? A investigação foi feita antes ou depois da caminhada? De que modo esta leitura poderia tirar o espírito e a curiosidade e a descoberta do caminho? Ou trazer-lhe outras descobertas? Que seria dela se não soubesse da existência do Codex Calixtinus (parece uma bula para os calos…) o primeiro guia de viagens de Compostela, a terceira cidade santa do mundo ocidental no século XII. Um guia de peças litúrgicas e hinos que conta os 22 milagres do Santo. Convergem várias vias para peregrinos de várias origens (pág 36) até chegar ao Caminho português considerado pelo investigador Vítor Manuel Adrião o mais antigo de todos. A via religiosa e a via política cruzam-se, bem como as lendas e narrativas, como a do Matamouros ou uma ligada a Barcelos, terra natal da minha querida avó Maria José Vessadas.
Gosto muito e revejo-me nas impressões do que é a História e do seu caldo de fantasias e interpretações possíveis e imaginárias. História escrita por encomenda ou baseada em relatos de quem não viu, não sentiu, não experimentou? A dream within a dream? O terreno é pasto fértil para druidas, astrólogos, videntes, filósofos esotéricos, ocultistas, bruxos, magos, duendes, fadas ou doentes cuja fé desperta num chão sagrado (de efeito placebo) pode mover montanhas e curar doenças terminais.
Abundam por este mundo lugares de peregrinação a santos embalsamados ou de cera, tal como se vai a uma Amazónia ver os índios na demanda de um encontro antropológico de primeiro grau. Mas não serão todos os lugares passíveis da experiência do sagrado sem sairmos do lugar? Os Ara Solis, os altares do Sol não teriam mais adoradores e gente de bem com a vida se parássemos a contemplar o nosso fundo de beleza infinita, mesmo carregado de demónios, emboscadas e entes malignos que nos atiram para fora do Caminho? Nos relatos do Caminho onde se separa o lirismo de trovadores da prosa de mão séria e certa? A nossa autora prefere, e muito bem, fazer as suas releituras e questionar e questionar-se sobre o que de facto procura? Um corpo de um santo? Uma carga terrena telúrica capaz de lhe mostrar o caminho recto da fé? Uma terapia pedestre ocupacional que lhe resolva essa espécie de consolo impossível de satisfazer, esse sentimento trágico da vida de que falou ad nausea um Miguel Unamuno? Entendo que apenas lhe ocorre concluir que o mais importante é como nos pomos ao caminho, e que, em última instância, e muito democraticamente, é de todos o que o queiram percorrer. Se na Idade Média existiam 3 grandes tipos de peregrinos - os que iam de livre vontade, os que eram obrigados e os de motivações profanas - a Fausta apenas lhe interessa a superação e a viagem interior.
A história do teólogo João Delicado e da importância dos outros talvez seja uma das chaves do livro. Fala de trocas espontâneas, simples, e de pessoas leves e bem intencionadas. Fala de que a Vida pode ser como o Caminho, este ou outro qualquer de todos os dias, em todos os lugares e através dos tempos. Seria monótono? Confiar em Deus e na Providência e no Amor e nos outros para nos alimentarem o espírito?
Cita então um livro que eu amo "The Kindness of Strangers" e a pergunta fulcral do Dalai Lama:
Porque é que se no início e no fim da vida dependemos da bondade dos outros, no meio, não somos bondosos?
E dá um dado importante e preocupante: as crises não estão a servir para aproximar o outro, mas para aumentar os níveis de desconfiança.
Ocuparmos-nos dos outros é ocuparmos-nos de nós lembra ainda o Lama. Uma espécie de egoísmo altruísta que tornaria a vida muito mais suportável.
Não me alongo mais e pergunto a todos.
Achas que te purificaste e voltaste a encarrilar numa vida condigna (não materialista digamos assim) depois desta viagem?
Porque te identificaste mais com os profanos?
Que tipo de perigos experimentaste?
Alguma vez pensaste: isto é um embuste?
No que te sentes mais crescida?
E diferente?
Tens um nova visão do ser e do mundo?
Mais forte e mais frágil e mais humana?
Não se volta diferente de qualquer viagem?
Quanto tempo demora a desfazer um hábito ou mudar um padrão de pensamento?
Precisamos de sofrer? Precisaste? De quedas? Zonas de desconforto?
Devíamos fazer coisas como os islandeses sem nos preocuparmos com o Falhar, o estigma do insucesso, o arriscar?
Tiago Salazar
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