Memorial do Holocausto, Berlim
Eu não vivo numa bolha de ar em Hartford.
Como posso ser fiel aos fiéis poemas
de Stevens
sem trair esta cilada?
Milosz sabe que a história é tudo o que temos
e que as traições maiores
são cometidas contra a história,
mas também em nome dela.
Como podemos nós
recuperar o sopro
que exaspera domínios no escuro,
a inumana beleza de um pavão
que abre a sua cauda
na noite iluminada,
e dizer depois
na rasa voz de quem abandonou
a inflexão retórica da sua voz,
Varsóvia, Treblinka, Celan, aldeias
cujos nomes esquecemos –
e é sintomático que os tenhamos esquecido –
onde lâminas aceradas esquartejaram
a eternidade de um rosto,
lugares – porque em cada nome
há um lugar – onde outros nomes se perfilam
num vórtice de tempos que se abrem sobre tempos
e gritos que se abrem sobre gritos,
e pétalas se expõem ao mortal apuro de se ter
sobre ombros a herança da qual
não há despedida, somente um cobarde desvio,
um conluio de silêncio e sangue?
Como esquecer? Como não esquecer?
Stevens, Milosz: uma corda de água
dança entre duas margens.
A corda é invisível
e eu procuro-a
sem método.
Aquele que me lê
deverá acreditar:
Deverá acreditar
que eu vivo
perscrutando as águas
mas dentro delas.
LUÍS QUINTAIS
in, Duelo
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