quinta-feira, 24 de maio de 2018

A história de um dia


Beniamino Pisati





A abóbada da tarde mais uma vez acaba
o sol de a fechar sobre a minha diária aventura
Viram-no partir pontualmente à mesma hora
quando num pouco de dia a um canto sempre a um canto
já eu tinha conseguido arredondar
uma íntima ampola de som para a palavra definitiva
Ia mesmo soltá-la eu que todo o dia fui para ela
quando ele me deixou e foi abrir outras portas
erguer verticalmente caídas esperanças
e passar novas mãos por tantas faces mortas
Só me resta recolher o meu rebanho de pensamentos
com um vago rumor de guizos
enquanto à beira-mar os camponeses deixam
palavras não aladas cair na água morta
Morro irremediavelmente nesses pensamentos
que ainda agora o sol iluminava
enquanto eu os estendia e os recolhia
e os orientava numa direcção que convinha
e os precipitava sobre o fumo de uma casa
sobre um buraco de luz ou uma coluna de fumo
mais volúveis que um bando de pássaros
Morro mais uma vez criticamente completo
Todos os gestos
carregados com vinte e quatro horas de história
de ventre ferido na aventura do restolho
petrificaram inevitavelmente 
na face orientada de uma estátua 
aqui ou noutro jardim 
Todo o caminho é de regresso 
Amanhã serei outro: 
lavarei os dentes com toda a solenidade
como antigamente meu pai antes das grandes viagens 
enquanto alguém no espelho 
se encarregará de olhar pelos meus olhos 
Assim sou passado de dia em dia 
confiado pelo dia que parte ao dia que chega 
não venha o sino que ao longe toca perturbar
as linhas de um rosto que recompus 
e pus de pé na atmosfera doméstica 
Fechar um postigo pode ser um gesto cheio de significado quando 
na arrumada paisagem quotidiana 
a expectativa marcada pela funda inspiração 
nos revela duas ou três mãos
postas sobre a colina 
Amanhã serei outro 


Ruy Belo
in, Obra Poética de Ruy Belo




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