sábado, 5 de maio de 2018

"4321"




15 dias a ler este livro...estou com o cérebro em papa...
870 páginas, de uma vida que se multiplica em 4.
Quatro versões alternativas da infância, adolescência e início da idade adulta de Archibald Ferguson. Conta não apenas uma vida, mas as quatro vidas paralelas do jovem Archie Ferguson nas turbulentas décadas de 1950 e 1960.

O primeiro Ferguson, que é jornalista, é o mais comprometido com a política do seu tempo. É nele que está concentrado o conteúdo político do romance. O segundo não perdura, pois morre muito novo — ainda que em vida seja alguém que presta atenção, como quando, aos 6 anos, ouve falar da execução dos Rosenberg (casal acusado de espionagem a favor da União Soviética). É um momento enorme na sua vida, em que percebe que existe um mundo lá fora. O terceiro Ferguson não está interessado em política e é o mais atormentado e instável dos quatro. E o quarto, o mais zangado de todos e o que quer tornar-se romancista. Tem um espírito hipercrítico, mas sabe que não se deve envolver e que tem de continuar a fazer o que está a fazer.

Faz-nos pensar que o importante não é o destino, mas sim a viagem.
Nesta viagem durante o livro, assiste-se ao advento da televisão, à fuga dos Dodgers e dos Giants para a Califórnia depois da época de 1957, ao deslumbramento por Kennedy, às transformações no mundo da fotografia, ao tumulto social gerado pela guerra no Vietname, a Marcha de Selma, os tumultos raciais de Newark.


Na contracapa lê-se:

"O que nos motiva verdadeiramente? O que nos leva a optar por um caminho em detrimento de outro? De que futuros abdicamos pelo simples facto de termos apenas uma vida para viver?
No dia 3 de março de 1947, na maternidade do hospital Beth Israel em Newark, New Jersey, nasce Archibald Isaac Ferguson, filho único de Rose e Stanley Ferguson. Uma só criança a quem são dados quatro caminhos ficcionais diferentes, quatro direções possíveis. Uma pessoa que se desdobra em quatro, para assim viver quatro vidas paralelas e absolutamente diferentes, mercê das circunstâncias, do acaso, e das escolhas. Os contrastes entre os quatro Fergusons são evidentes. As distintas relações com a família e as amizades, o amor romântico e as paixões intelectuais percorrem a tumultuosa paisagem da América, entretecendo-se com momentos cruciais da História do século xx. Em comum, o fascínio por uma mulher: a magnífica Amy Schneiderman. Todavia, cada uma das relações entre os quatro Fergusons e Amy é única. E nós, leitores, somos as testemunhas de cada momento de prazer, cada momento de dor, cada lento avançar rumo ao inevitável culminar das suas – de todas – as vidas."

A pergunta que surge quando se começa a ler o livro é:
"E se?"
E começamos a ter consciência dos múltiplos caminhos de uma só vida, da nossa vida,
somos o resultado do que nos acontece e também do que não nos acontece.
Que ao vivermos uma vida estamos a perder muitas outras.
Somos também o resultado dos nossos genes. Quem somos é algo que não podemos controlar. Nascemos em corpos e em mentes que nos foram dadas - relação entre o inato e o adquirido. Neste caso, cada um dos rapazes tem um conjunto diferente de circunstâncias, embora com a mesma origem genética — porque têm os mesmos pais. Mas vivem em cidades distintas, os pais passam por diferentes obstáculos, e numa das versões o pai morre quando o rapaz tem apenas 7 anos.
Como é que cada uma destas coisas afecta cada um deles e os transforma em pessoas diferentes?


“O grande drama de todos nós 
é a família onde nascemos.” 
Paul Auster


O que somos antes de sermos?
A noção de família e sobre como a família em que nascemos molda a nossa vida.
Numa das versões, um dos tios de Ferguson faz uma aposta e ganha imenso dinheiro. Noutra, perde tanto dinheiro que se mete em todo o tipo de problemas, que conduzem à morte do pai do rapaz.
O que me fez pensar sobre o que teria acontecido se eu tivesse feito isto em vez daquilo, se tivesse estado naquele lugar em vez de estar neste. Como seria ter nascido num país ocupado por um exército estrangeiro e como isso teria afectado a minha vida.
Os da minha geração de 70, tivemos a sorte de sermos poupados a muitos dos horrores que a maioria da Humanidade teve de suportar.

Quais foram as vitórias e os fracassos na “educação sentimental” de Archie Ferguson (que teve seu nome de família determinado por uma anedota casual, quando o seu bisavô chegou aos EUA como imigrante judeu russo de Minsk. Quando chega a Ellis Island, os americanos adaptam o nome dele à pronuncia americana, e foi assim que Isaac Reznikoff, dito na língua iídiche soou a Ikh hob fargessen, e Issac Reznikoff começou a sua nova vida na América como Ichabod Ferguson)?
E mais: O que o rapaz fez para frutificar a vocação de escritor?
Graças a este artifício, temos quatro existências que, ao mesmo tempo, são profundamente diferentes e, por incrível que pareçam, semelhantes.
Numa parte testemunhamos um Ferguson que não se importa com a sua herança judaica; outro que se importa com ela até demais; depois, lemos sobre um Ferguson apaixonado por sua prima, Amy; então, temos um Ferguson bissexual; e assim vamos até ao momento em que cada versão encarará, sem melindres, o acaso que surge com seu verdadeiro rosto – a morte.

No fim, percebemos que o Ferguson 4 é aquele que está a escrever o livro.
E ele quer expressar o horror que sentiu quando viu um amigo morrer à sua frente. Quer reviver isso, para não esquecer. E inventa os outros três Ferguson, que são diferentes versões de si mesmo, e quer amá-los tal como se ama a si próprio. Quando, como escritor, os elimina da história, experimenta uma angústia tremenda — mantendo vivo o que sentiu aos 14 anos.
Aqui, como em outras partes do livro, Auster conta um episódio que lhe aconteceu quando tinha 14 anos:
"...conto a história do que me aconteceu aos 14 anos. Tinha ido para uma colónia de férias, estava a fazer uma caminhada com outros 20 rapazes na floresta e fomos apanhados por uma tempestade enorme. Desatámos a correr à procura de clareiras para fugir dos relâmpagos e, para isso, tivemos de passar em fila por baixo de uma cerca de arame farpado. E o rapaz à minha frente, enquanto estava a atravessá-la, foi atingido por um raio. E morreu. Num segundo, estava morto, a centímetros de distância de mim. Penso que esta foi provavelmente a experiência mais fundamental da minha vida. Esta noção de que tudo pode suceder, em qualquer momento. E esta é a história que me motivou a escrever o livro. Mesmo que não a conte exactamente como aconteceu na vida real, há no livro duas mortes de pessoas jovens. Quem o ler até ao fim vai perceber que este foi o factor motivador na sua composição."

Outro dos episódios que está relacionado com uma experiência pessoal de Auster, é a sua experiência como judeu de 3ª geração nos EUA, relacionado com a parte do livro em que perguntam a Ferguson se ele celebra o Dia de Acção de Graças. 
Auster conta que:

"Para mim, ser judeu significa ter sempre a sensação de ser um outsider. Ser judeu é como ser um estrangeiro. Tenho de dizer que um dia me fizeram essa pergunta. Eu era novo e fiquei muito chocado. Não acreditava que pudesse haver pessoas tão ignorantes daquilo que a América realmente é — supostamente, um lugar onde todos podem sentir-se em casa. Claro que celebramos o Dia de Acção de Graças! Mas o importante disto tudo é que, ao mesmo tempo que há muitas figuras proeminentes da sociedade americana que são judias, o antissemitismo continua, é algo que nunca nos deixou. E parece que estamos a entrar numa nova fase. No outro dia ouvi uma história na TV sobre um partido de extrema-direita, ultrafascista, no Midwest, cujo plano era distribuir todos os negros dos Estados Unidos por dois ou três estados e dar-lhes a independência. E depois expulsar todos os judeus. Portanto, há gente a ter ideias destas, hoje, em pleno século XXI."

No fundo, o livro é uma profunda meditação sobre o fenómeno da sincronicidade que afecta cada um de nós. Divulgada, em 1952, pelo psicólogo C.G. Jung, a sincronicidade é um conceito que tenta explicar como factos sem uma relação aparente de causa-e-efeito têm, na verdade, um princípio ordenador, que traz um sentido para a confusão do mundo em que vivemos.
Cada Archie apresentado escuta poemas que passam pela sua cabeça e depois desaparecem, encontra-se com personagens secundários numa história e tornam-se importantes em outra, e sofre tragédias duradouras num momento e que logo em seguida se transformam em piadas. Não existe um motivo aparente que ligue esses acontecimentos – ou talvez exista apenas uma “multidão de causas”, incompreensível aos nossos olhos.

No final de 4321, após terminarmos uma deliciosa odisseia com mais de 800 páginas, o fascínio com as coincidências é substituído pela ilusão de que só a arte salva quem se dedica a ela com todas as forças. Faz-nos pensar que um mundo onde não há literatura, em que não há poemas, nem romances, nem histórias, como seria difícil para nós sequer pensar a realidade. Creio que a literatura é fundamentalmente uma necessidade humana, tal como a comida e a água. Sem ela, não seríamos capazes de pensar quem somos. Claro que não tem um sentido prático — não alimenta ninguém, não salva ninguém de ser atingido por uma bala. Quando as pessoas estão em situações de sofrimento, para que serve a literatura? Em tempos de guerra e de destruição, não há tempo para a literatura. A pressão por manter-se vivo é demasiado grande. Mas, também me lembro de ler num dos livros de Primo Levi que nos campos de concentração, muitos prisioneiros mantiveram-se vivos a recitar poesia uns aos outros. Talvez por ser capaz de dar ao Ser Humano alguma esperança de que o espírito humano vai sobreviver. E é isso o que a literatura também faz.
Nada disso, porém, impede que o “acaso permanente” da morte domine as preocupações de Archie Ferguson – e, claro, do próprio Auster. E este é o único facto que nem a sincronicidade consegue explicar.

Para quem meditou tanto sobre os desvios do destino, a única coisa permanente é contarmos a nossa história da melhor maneira possível – mesmo que ela não pareça ter sentido algum.

Quando acabei de ler o livro fiquei com a sensação de que os primeiros 20 anos são os anos mais importantes das nossas vidas. O livro é sobre o desenvolvimento humano. Sobre o que se passa com as pessoas enquanto estão a crescer, as mudanças imensas que sofrem naqueles anos incrivelmente importantes da infância, da adolescência e da juventude, sobre o desenvolvimento e o crescimento, e não sobre experiências em geral. O que a meu ver, o torna muito mais interessante porque escava nos nossos sentimentos fundamentais da adolescência, como ver e sentir algo pela primeira vez. À medida que crescemos, deixamos de nos lembrar como isso é. Como é experimentar uma comida pela primeira vez, ouvir a primeira peça de música, ler um livro ou ver uma peça de teatro.
O Ferguson 2, descreve longamente as mudanças que o seu corpo está a atravessar. E como isso é misterioso e assustador e estimulante ao mesmo tempo. Ele fala do facto estranho e incontrolável que é um rapaz tornar-se um homem, de não sabermos como vamos ser quando acordarmos de manhã. Todos nós passámos por isso.




4,3,2,1, é sobre a identidade, o desenvolvimento pessoal, o condicionalismo.
Um retrato do que foi a infância, adolescência e juventude de Paul Auster.

Deixo aqui um excerto de uma entrevista a Paul Auster que li no "El País", que evidencia as semelhanças entre ele e Archie Ferguson:

"A infância do protagonista de 4321 (ou de seus quatro avatares) tem muito em comum com a de Paul Auster. Archie Ferguson nasceu em Newark, Nova Jersey, em 1947, como seu autor, apenas um mês depois que ele, numa família de descendentes de imigrantes judeus da Europa Central. “A América dos anos cinquenta foi uma época feliz para mim. Minha grande paixão sempre foi o desporto, mas em paralelo desenvolvi um interesse desmedido pela leitura, algo até certo ponto inexplicável, porque na minha casa ninguém lia”.

– Quais foram os primeiros passos de Paul Auster na literatura? Que leituras foram decisivas na formação de sua sensibilidade?

Comecei a escrever com nove anos, poemas sem nenhum valor, obviamente, mas que indicam algo importante: a poesia sempre foi uma presença fundamental na minha vida. Escrevi meus primeiros contos quando tinha 10 anos de idade. Aos 12 entreguei um muito longo ao professor e ele pediu que eu lesse em voz alta na frente de toda a classe.

Com 13 anos, leu tudo de Camus e grande parte da obra de Gide, além dos grandes romancistas russos. Duas leituras realizadas aos 15 anos causaram grande impacto nele, Cândido, de Voltaire, e especialmente Crime e Castigo, de Dostoiévski. “Aquele livro deixou-me transtornado. Nunca tinha lido nada parecido; quando terminei decidi que se alguém tinha sido capaz de criar algo assim, eu também queria tentar”.

Quando pergunto pelos escritores norte-americanos ativos durante seus anos de formação, Paul Auster volta a fazer uma reivindicação contundente da poesia: “Não me interessavam, só os poetas me atraíam. Durante minha adolescência, a poesia norte-americana passava por uma verdadeira era dourada. Poderia citar muitos nomes: Robert Creeley, Charles Olson, Robert Duncan, George Oppen, Louis Zukovski, W. S. Merwin, Elizabeth Bishop, Robert Lowell, Theodore Roethke, Sylvia Plath. E estou apenas arranhando a superfície, a lista é infinita.”

A escrita exige uma entrega sem fissuras, abrir-se a toda dor e alegria. Fazer isso direito requer coragem moral.

Paul Auster não procurava na poesia um veículo para se expressar como criador. Embora tenha publicado livros de poemas, sempre foi consciente de suas limitações. Seu único interesse era se tornar romancista. Por muito tempo esteve convencido de que nunca conseguiria: “Minha ambição era ser capaz de escrever um romance, mas não tinha a preparação e a experiência”, diz ensimesmado. Os anos que passou na Universidade de Columbia foram decisivos. Aos 22 anos já tinha numerosos cadernos completos, que somavam umas mil páginas, contendo o embrião de vários romances: “O material estava lá, mas eu ainda não estava preparado para dar forma, faltava o equipamento mental necessário. Ainda não tinha ideias claras sobre como escrever ficção. Quando terminei a faculdade estava muito frustrado. Cheguei a pensar que nunca seria romancista. Até aos 30 anos escrevi poesia e ensaios, mas nem uma única linha de ficção”.

Após a formatura, Auster viajou para a Europa, trabalhou num petroleiro e passou um tempo na França com a escritora Lydia Davis, que conheceu na faculdade. Eles se casaram em 1974 e se estabeleceram numa casa de campo no condado de Duchess, Estado de Nova York. Depois de uma difícil convivência, em 1978 eles se separaram. Paul Auster sentiu que tinha atingido o fundo.

“Foi o pior momento da minha vida. Tinha 30 anos, nenhum dinheiro e meu casamento estava a afundar. A cada dia aumentava a minha convicção de que nunca conseguiria ser escritor. Uma noite no final de dezembro de 1978, o meu amigo David Reed, o pintor, levou-me para ver uma coreografia e durante o espetáculo senti que se abria uma porta dentro de mim. Ao voltar para casa comecei um longo texto em prosa, Espaços em Branco. Terminei em janeiro, enquanto caía uma nevasca impressionante. Foi uma das noites mais importantes da minha vida. Fui dormir com a sensação de que finalmente podia dizer que era escritor. Na manhã seguinte, domingo, o telefone tocou muito cedo. Meu pai tinha morrido de um ataque cardíaco naquela mesma madrugada. Duas semanas depois, comecei um livro sobre ele. Quando estava terminando conheci a Siri, a pessoa mais importante da minha vida, numa leitura de poesia”.







Sem comentários:

Enviar um comentário