Foi no macabro tempo da escravatura. Vindas dos vastos planaltos do Bié e do Moxico, caravana de negros – uns para serem transaccionados como mercadoria, outros, pelo contrário, para transaccionarem a própria mercadoria – acorriam, em grossas semanas de andamento, ao renomado empório de Benguela.
De entre esses fartos bandos, aconteceu ir um rapazinho. Não para ser vendido, mas para se adestrar, junto dos companheiros mais velhos, nas lides da permuta, então de cera, borracha, marfim, etc.
Dada a sua condição de livre, e mais ainda, seduzido pela curiosidade, quis ver o local onde viviam os brancos, com muitas casas grandes e bonitas, muitos caminhos largos e cuidados, tudo tão diverso do seu pobre quimbo distante. Lá, como borboleta em campo florido, ebriamente vagueou pelos sítios mais tentadores. Tudo o maravilha. Era efectivamente verdade o que se relatava na sua terra acerca dessa terra! Tanto branco, tanta gente de falar e proceder diferentes! Embora de sua cor, nunca imaginou existir variedade tão grande de semelhantes seus.
A certa altura, estremece: um rumor estranho fere-lhe a audição. Que seria? De que partia essa roufenha voz? De fera? Não, de fera não podia ser, de seus sinais já distinguia a espécie. Que seria afinal? Fantasma de branco?
Hesitante, queda-se por momentos. Retrocederia? Prosseguiria em sua deambulação? E fica-se a olhar para todos os lados. Mas nada vê de anormal. Em seus ouvidos inquietos, apenas a lugubridade do som lhe martela sem cessar, numa penetrante e dolorosa excitação.
Decidido, avança. Não almeja ele, em seu longo e voluptuoso sonho de aventura, conhecer a terra dos brancos, a grandeza das suas obras, o mistério que os diferenciava dos da sua raça? Demais, aquela toada, qual ente gemendo, esquisitamente soluçando, em vez de o repelir, irresistivelmente o atraía. Então, mais adiante, divisa em incomensurável extensão uma coisa azulada, num total encarquilhamento.
À medida que se aproxima, o coração bate-lhe mais forte, mais arfante se lhe torna a respiração. Mas não desiste, aquilo empolgava-o. E verifica, trémulo de medo e espanto, que aquela massa móvel, ora rolando para a terra, ora recuando para o próprio seio, não era senão água, e não a continuação do firmamento como depois supusera.
Largo tempo se embrenhou em estática observação. Embora temeroso, agachou-se para captar um pouco do líquido misterioso. Com a mão em concha, tentou a operação. Mas nada reteve, a água escapava-se-lhe por efeito do nervosismo.
Notando a mão viscosa, diferente da maneira como restava quando a molhava na outra água, instintivamente a levou à boca. Mas logo cuspiu numa careta. Amargava, sabia a sal! A sal!... Como podia ser isso, água com semelhante gosto? E riu-se da novidade! Tudo tão diferente das coisas da sua terra! Ih! ih! ih! Os brancos deviam ser feiticeiros, deviam mesmo trabalhar com almas! Quase que tinha medo deles!
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De retorno ao seu povoado, relatou a ocorrência ao soba. Que coisa fantástica, essa água mover-se, não sempre para a frente como o rio, mas indo e vindo como que sob o impulso de alguém! – comentara em remate.
Maravilhado com a narração, o potentado ordena que, sem tardança, abalasse um avultado grupo de vassalos com cabaças: também queria que, à semelhança da terra onde viviam os brancos, o fabuloso líquido também circulasse no seu sobado.
Partem os emissários. E com eles, o rapaz.
Atravessam matas, xanas e anharas. Sempre por lugares conhecidos, batidos pelo uso. É o dia consagrado à marcha, a noite ao repouso em acampamento. Então, ao clarão de uma fogueira protectora, comem descansadamente, em coro orfeónico enchem a selva com seus instrumentos e vozes, para depois, serenamente, destemidamente, se enfronharem no domínio de morfeu. Acima de tudo, confiavam na paz de seus espíritos.
Em Benguela, o rapaz encaminha o pessoal para a praia. Idêntica sensação os avassala. Que singularidade aquela imensidão de água, ora para a frente, ora para trás, parecendo manobrada por alguém!
Enchidas as vasilhas, retomaram o território natal. Geral ansiedade os aguarda. Então, à sua chegada, estrondosa festa os saudou. Fogueiras incendiaram a noite, comidas e bebidas saciaram os estômagos, xingufos e cantos electrizaram os corpos nos meneios da dança. Agora, que alegria: também lá passaria a existir a tal água mágica!
De manhã, terminada a manifestação de regozijo, escolhe-se o local adequado, não deixasse a água de se agitar livremente. À cautela, não fosse o líquido infiltrar-se no solo, dispõem-se pedras e mais materiais. E uma por uma, vão esvaziando as cabaças.
Em redor a multidão, olhos arregalados e ouvidos atentos, observa em silêncio. A todo o instante esperava ver a água mover-se, primeiro distendendo-se, depois contraindo-se, sempre numa voz rouquenha. Mas a água, desde o princípio da operação, permanecia queda, num absoluto contraste da excitação dos circunstantes.
Já não restavam vasilhas a despejar. À ansiedade, sucede a decepção. Devia ser mentira! Podia lá a água ir e vir, sem mais nem menos? Os rios rolavam, sim, mas num só sentido.
Tomando o acto como ludíbrio, o soba irrita-se. Manda chamar o rapaz, quer mandá-lo castigar. Mas ele pede mais uns momentos de espera.
Na sua concavidade, a água, alheia a comoções, indiferente a azedumes, persistia na sua quietude. Mover-se, ora alteando, ora baixando, ora avançando, ora recuando, mas sempre roncando e espumando, talvez bramindo, talvez penando, só lá longe, no seu meio natural – o imenso calunga.
E o rapaz é severamente espancado. E os mensageiros, posto que confirmassem a autenticidade da agitação –sim, era verdade mesmo- ainda mais sofreram o tormento.
Eis o que em Benguela relata a tradição.
ÓSCAR RIBAS
In, Quilanduquilo
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