O filme "Uma História Simples", de David Lynch e lançado em 1999 causou na altura alguma estranheza devido ao facto de ser um filme “normal” de um realizador, por norma, “anormal”. Confuso? Um pouco mas, para qualquer conhecedor da filmografia de David Lynch esta premissa é facilmente compreendida... depois de filmes ou séries como Lost Highway, Twin Peaks, etc, não deixou de ser peculiar ver um filme tão... simples! Ou será que não é tanto assim...
Esta pequena obra-prima narra a história baseada em acontecimentos verídicos de um homem, Alvin Straight, que em 1994, com 73 anos, faz uma viagem de mais de 500 quilómetros, que separam Laurens, no estado do Iowa, até Mount Zion no Wiscosin, num pequeno tractor/cortador de relva de 1966, para visitar o seu irmão gravemente doente.O objectivo da viagem foi reatar as relações com Lyle, seu irmão, 3 anos mais velho do que ele, que está gravemente doente. Há mais de dez anos que os dois irmãos estavam de relações cortadas.
Um homem, um cortador de relva, campos a perder de vista, quilómetros de estrada sem fim e sem trânsito, a tranquilidade da natureza, a sabedoria e teimosia de um septuagenário, um céu estrelado, e temos os ingredientes de um filme muito simples, mas muito lindo. David Lynch, um cineasta controverso e difícil, pegou neste material, foi contra a sua natureza complexa e optou pela simplicidade. Resultado: um filme encantador, de uma singeleza que emociona que irradia uma paz e uma calma que nos contagiam. Um filme que no final nos transmite uma vontade enorme de sermos melhores, e porque não, mudar os hábitos de vida que temos adiptado até então. Há quem diga que se trata de uma obra-prima. Não me atrevo a confirmar, porque me faltam conhecimentos profundos da arte cinematográfica para fazer semelhante avaliação, mas posso garantir que é dos filmes de que mais gostei a ver cinema.
É quase inacreditável como um filme tão simples, tem tanto para nos ensinar. Alvin Straight é um homem sereno, determinado, afectuoso e ao mesmo tempo amargurado. Sereno, porque encara a vida com sabedoria, sem pressas, que sabe dar ao tempo o seu devido valor e sabe que as decisões acertadas precisam de tempo para serem pensadas e amadurecidas. Determinado, porque, depois de meditadas, as suas decisões são inabaláveis e ninguém o conseguirá fazer desistir delas. Afectuoso, porque sabe acarinhar as pessoas que ama e ser cordial com todas as outras com quem se cruza na vida. Amargurado, porque nunca esqueceu a crueldade da guerra que viveu nos campos de batalha e das atrocidades que presenciou, mas amargurado principalmente pela zanga que perdura há dez anos, com seu irmão Lyle, com quem mantinha uma relação de grande cumplicidade desde os tempos de criança.
Um dia, Alvin recebe a notícia de que Lyle está gravemente doente e resolve partir estrada fora, num cortador de relva, para percorrer os cerca de 500 quilómetros que o separa do irmão. Durante as seis semanas que demora a viagem tem tempo de sobra para ultrapassar o seu orgulho e recordar tudo o que de bom e bonito viveram em crianças, apesar da dureza do trabalho que ambos faziam em conjunto durante o dia na quinta dos pais. De noite gostavam de adormecer na rua, à porta de casa, lado a lado, em silêncio a olhar o céu e contemplar a estrelas. Impressionados pela imensidão do firmamento, cogitavam se existiria vida como a nossa, em redor de algum daqueles pontos luminosos.
“Uma História Simples” é um filme tranquilo e tranquilizador, que avança perante os nossos olhos ao ritmo vagaroso de um cortador de relva; uma lentidão que não impacienta, antes acalma. O espectador acompanha, deliciado, Alvin na sua viagem de reconciliação e paz. Aprende com ele a virtude da afabilidade. Descobre a riqueza do silêncio e da intimidade com a natureza. Ouve, sob o céu estrelado, as confidências de um homem que já passou por muitas viscissitudes na vida. Ficou a saber como a guerra, e o alcool com que procurou esquecer as atrocidades que viveu na guerra, o transformaram num homem mau e a forma como um padre com quem desabafou, o ajudou a exorcizar os fantasmas que o atormentavam e o ajudou a voltar a ser o homem bom que tinha sido anteriormente. Agora Alvin, que conseguiu vencer o seu orgulho e esquecer ofensas passadas, vai estrada fora, num cortador de relva, fazer as pazes com o irmão.
Ultrapassadas as dificuldades, e os percalços, previsíveis para uma viagem feita em ondições tão precárias, Alvin Straight chega finalmente a casa do irmão. Ignora como irá ser recebido mas não está preocupado.Chama-o e espera. Finalmente Lyle aparece à porta. Olha-o e ao seu bizarro meio de transporte, e quando todos esperariam que caíssem nos braços um do outro, ficam em silêncio. Emocionados sentam-se à porta de casa sem trocarem palavra, levantam os olhos ao céu e contemplam as estrelas. As palavras eram desnecessárias. Os dois irmãos recuaram no tempo mais de 60 anos e estavam ambos em paz e felizes.
Paz, sossego, perseverança, arrependimento, perdão e amor. Que lição linda, nos oferece este filme fascinante. E mais fascinante ainda porque Alvin Straight existiu na realidade e percorreu 500 km, bem difíceis, num velho cortador de relva, para olhar o céu e contemplar as estrelas, ao lado do irmão com quem se tinha incompatibilizado dez anos antes. Como é possível não gostar de cinema, quando ele nos oferece exemplos tão bonitos.
A dicotomia complexidade versus simplicidade pela qual o filme foi tão falado na altura é um exercício divertido de analisar no sentido em que, o que tem de simples ou normal uma homem de 73 anos viajar durante 6 semanas num pequeno tractor? Ele tinha a possibilidade de apanhar uma camioneta mas não, este homem decide fazer as coisas da forma mais difícil! E porquê... bom, esta é uma resposta a descobrir ao longo da obra. Mas por outro lado, o que tem de complexo um filme que é basicamente um road-movie com uma personagem idosa que tem muitos “fantasmas” por resolver na sua alma antes de chegar ao seu destino?
Aquilo que mais me agradou no filme quando o vi foi indiscutivelmente a sensação com que fiquei no final. Esta é uma obra que deixa-nos a pensar imenso sobre a vida mas, ao mesmo tempo, deixa uma sensação de alegria e esperança no coração. Ao ver este homem cumprir a sua viagem, sentimos a partir de certa altura a necessidade de concretizar algo semelhante na nossa vida. Sozinhos durante tempo incerto com todo o tempo do mundo para reflectirmos sobre tudo e sobre nada, sem o relógio a mandar em nós, apenas o homem com a natureza, a sua Casa, com a possibilidade de contactar com ele mesmo sem interrupções, sem obrigações...
A juntar às brilhantes interpretações (mais especificamente de Richard Farnsworth que injustamente perdeu nesse ano o óscar de melhor actor principal) somos agraciados por uma brilhante banda sonora (do eterno Angelo Badamenti), um espectacular fotografia (de Freddie Francis) e uma sublime realização de David Lynch (que consegue toda a riqueza visual típica dos seus filmes numa obra passada quase na sua totalidade em cenários exteriores).
Uma História Simples é uma obra essencial, digna dos mais rasgados elogios, que ninguém deveria perder. Apenas uma pequena ressalva em relação à edição nacional do DVD que, como tantas outras vezes acontece, é de fraca qualidade, especialmente no que diz respeito a extras.
"Depois de David Lean, só David Linch.
ResponderEliminarHistória Simples, e na verdade "Obra Prima da 7ª. Arte".
Zé Mário Carvalho"
Lean fica para a história...Rio Kwai, Lawrence da Arábia e Doutor Jivago...
Lynch ainda nos continua a surpreender...agora com o regresso do Twin Peaks...já para não falar na música...é surreal este homem...
Grata pela visita, Zé Mário Carvalho.