domingo, 28 de setembro de 2025

Faca...Salman Rushdie...Excertos

 




 

" Estava na minha cidade [hospital] mas por enquanto não fazia completamente parte dela. A Faca tinha-me separado do meu mundo, arredara-me brutalmente e colocara-me nesta cama berradora.
Durante estas vazias noites sem dormir, pensava muito na Faca como ideia.
Quando uma faca pratica o primeiro corte num bolo de noiva, isso faz parte do ritual pela qual duas pessoas se unem. Uma faca de cozinha é uma parte essencial do ato criativo da culinária. Um canivete suíço é um auxiliar, capaz de executar muitas pequenas mas necessárias tarefas, tais como abrir uma garrafa de cerveja. A navalha de Occam é uma faca conceptual, uma faca em teoria, que elimina uma porção de disparates incitando-nos a preferir as explicações mais simples possíveis às mais complexas para as coisas. Por outras palavras, uma faca é um utensílio, e adquire significado pelo uso que dela fazemos. É moralmente neutra. O que é imoral é o uso indevido das facas, 
Mas, não era isto a mesma coisa que dizer "as armas de fogo não matam gente, quem mata gente são as pessoas? Estaria eu a cair numa armadilha familiar?
Não. Porque uma arma de fogo tinha apenas um emprego, um propósito. Não se podia cortar um bolo com uma Glock, nem cozinhar com uma AR-51, nem abrir uma garrafa de cerveja com a Walther PPK favorita de James Bond. A única maneira de estar no mundo de uma arma de fogo era a violência; o seu único propósito era causar dano, e mesmo tirar vidas, animais ou humanas.
Uma faca não era como uma arma de fogo"

" A Linguagem era também uma faca.
Podia abrir o mundo e revelar o seu significado, o seu funcionamento interior, os seus segredos, as suas verdades. Podia passar por cima de uma realidade para outra. Podia denunciar baboseiras, abrir os olhos das pessoas, criar beleza. 
A Linguagem era a minha faca.
Se eu tivesse sido inesperadamente apanhado numa involuntária luta com facas, talvez fosse esta a faca que utilizasse para ripostar. Podia ser o utensílio que usaria para refazer e reclamar o meu mundo, para reconstruir a moldura em que a minha imagem do mundo pudesse mais uma vez estar pendurada na minha parede, para gerir o que me tinha acontecido, assenhorar-me dele, fazê-lo meu."

"A Arte desafia a ortodoxia.
Rejeitar ou denegrir a Arte pelo facto de ela o fazer é não compreender a sua natureza.
A Arte coloca a apaixonada visão pessoal do artista em contraponto com as ideias aceites do seu tempo. A Arte sabe que as ideias aceites são inimigas da Arte, como nos disse Flaubert em Bouvard et Pécuchet. Os clichés são ideias aceites, e também as ideologias o são, tanto aquelas que dependem da sanção dos invisíveis deuses do céu como as que não. Sem a Arte, a nossa capacidade de pensar, de ver com frescura e de renovar o nosso mundo estiolaria e morreria. 
A Arte não é um luxo.
Está na essência da nossa humanidade e não requer proteção especial a não ser o direito de existir.
Aceita a discussão, a crítica, até a rejeição. Não aceita a violência.
E no fim, sobrevive àqueles que a oprimem."

 
in, Faca
Salman Rushdie



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