segunda-feira, 29 de setembro de 2025

A Última Discussão Sobre Deus...Salman Rushdie







 "(...) a minha vida tinha sido transformada pela violência desencadeada por uma falsa narrativa, compreendi que a minha vida de segunda oportunidade não podia contentar-se unicamente com prazeres privados. O Amor sobre todas as coisas, e o trabalho, claro, mas havia uma guerra a travar em muitas frentes - contra o fanático revisionismo que procurava reescrever a história, quer em Nova Deli, quer na Flórida; contra os cínicos poderes que procuravam apagar os dois pecados originais dos EUA, a Escravatura e a Opressão, e o Genocídio dos habitantes nativos do continente(...); contra as autodestruidoras mentiras que tinham feito a Grã-Bretanha sair da Europa.
Eu não podia ficar ociosamente quieto enquanto estas batalhas grassavam.
Nesta luta, também, eu iria - tinha de o fazer - manter-me envolvido.

Havia, contudo, uma discussão que não me interessava levar além:
A discussão que tinha atormentado a minha vida.
A discussão acerca de Deus.

Expressarei aqui, pela última vez, a minha opinião sobre a religião - qualquer religião, todas as religiões - e depois disso, pela parte que me toca, acabou-se.

Não acredito na "prova das coisas não vistas".
Não sou religioso.
Venho de uma família de gente maioritariamente irreligiosa ( a minha irmã mais nova, Nabeelah, que morreu prematuramente, era a exceção, era profundamente religiosa)
Eu nunca senti necessidade da fé religiosa para me ajudar a compreender e enfrentar o mundo. 
Compreendo, porém, que para muitas pessoas a religião forneça uma âncora moral e pareça essencial. 

E, na minha opinião, a fé privada de uma pessoa não é da conta de ninguém a não ser da pessoa em causa. 
Não tenho nada contra a religião quando ela ocupa esse espaço privado e não tenta impor os seus valores aos outros. Contudo, quando a religião é politizada , armamentizada, passa a ser da conta de todos, devido à sua capacidade de causar dano.

Lembro-me sempre de que na época do Iluminismo francês o inimigo na luta pela liberdade não era tanto o Estado como a Igreja. A Igreja Católica , com o seu arsenal de armas - a blasfémia, o anátema, a excomunhão, bem como as reais armas de tortura nas mãos da Inquisição - dedicava-se a colocar os seus rígidos limites ao pensamento. Até aqui e não mais além. E os escritores e filósofos do Iluminismo dedicavam-se a desafiar essa autoridade e a infringir essas restrições. Dessa luta derivaram as ideias que Thomas Paine trouxe para a América e que constituíram a base dos ensaios Senso Comum e a Crise Americana, que inspiraram  o movimento independentista, os Pais Fundadores, e o conceito moderno de Direitos Humanos.

Na Índia, no rescaldo do banho de sangue dos massacres da Partição que alastraram pelo subcontinente na altura da independência do domínio britânico e da criação dos estados da Índia e do Paquistão - hindus massacrados por muçulmanos, muçulmanos por hindus, algures entre um e dois milhões de mortos - outro grupo de pais fundadores, chefiado por Mahatma Gandhi e Jawahartal Nehru, resolveu que a única maneira de assegurar a paz na Índia era retirar a religião da esfera pública. a nova Constituição da Índia era, por conseguinte, totalmente secular na linguagem e na intenção, e isso perdurou até ao momento presente, em que a atual administração procura minar esses fundamentos seculares, desacreditar esses fundadores e criar um estado manifestamente religioso, maioritariamente hindu.

Quando os crentes acreditam que aquilo em que acreditam deve ser imposto a outros que não acreditam nisso, ou quando acreditam que aos não crentes se deve proibir a sadia ou humorística expressão da sua não crença, há um problema.
 
A armamentização do cristianismo nos EUA resultou na revogação de Roe contra Wade e na batalha em curso sobre o aborto e o direito da mulher a escolher.  Como disse atrás, a armamentização de uma espécie de hinduísmo radical pelos atuais dirigentes indianos levou a muitos distúrbios sectários, e até à violência. E a armamentização do Islão por todo o mundo levou diretamente aos reinados do terror dos talibãs e dos aiatolas, à asfixiante sociedade da Arábia Saudita, ao esfaqueamento de Naguib Mahfouz, aos ataques à liberdade de pensamento e à opressão das mulheres em muitos estados islâmicos e, para colocar as coisas em termos pessoais, ao esfaqueamento de que fui vítima.

Muitas pessoas, tanto liberais como conservadores, veem-se em dificuldades quando se lhes pede para criticar a religião. Mas, se pudéssemos simplesmente fazer a distinção entre a crença religiosa privada e pública, seria mais fácil ver as coisas tal como são e falar abertamente sem receio de ofender sensibilidades. 

Na vida privada, cada um acredita no que quer. No turbulento mundo da política e da vida pública, porém, não há ideias que possam ser couraçadas e protegidas da crítica.

Todas as religiões se preocupam com histórias das origens, relatos da criação do mundo por um ou muitos seres sobrenaturais. Esta é a minha história das origens sobre as religiões em si. 
Imagino que há muito tempo, antes de os nossos primitivos antepassados terem qualquer entendimento científico do Universo, quando acreditavam que vivíamos debaixo de um disco, com a luz do Sol a brilhar através dos buracos desse disco, e histórias que tais, procuravam respostas fabulísticas para as grandes questões existenciais - como viemos aqui parar? Como foi que o aqui veio aqui parar? - e, surgiu o conceito de um deus ou deuses do céu, um Pai Criador ou um panteão desses seres.
Depois, quando esses antepassados procuraram codificar ideias de comportamento certo e errado, próprio e impróprio, ao colocarem a si próprios a grande questão subsequente, Agora que aqui estamos, como devemos viver?. os deuses do céu, os deuses do Valhalla, os deuses do Kailasa, começaram a ser também árbitros morais (embora, nas religiões panteístas, o extenso rol de divindades contivesse muitas que não se comportavam particularmente bem, das quais não se pode dizer que sejam brilhantes exemplos morais). 

Durante muito tempo encarei este hipotético passado como algo semelhante à infância da raça humana, quando esses nossos parentes afastados precisavam de deuses da mesma maneira que as crianças precisavam de pais , para explicarem a sua própria existência e ditarem-lhes regras e limites para crescerem dentro do seu âmbito.

(...)

Nós já não precisamos das figuras paternais de um Criador ou Criadores para explicar o Universo, ou a nossa Evolução Humana para aquilo que somos hoje. E nós...ou, deixem que o diga modestamente, eu - não tenho necessidade de mandamentos, papas ou homens-deuses de nenhuma espécie que me ditem a minha moral. Tenho o meu próprio sentido ético, obrigado. Não foi Deus que nos deu a moralidade. NÓS é que criámos Deus para encarnar os nossos instintos morais.

Tenho mais uma coisa a dizer, que nunca disse antes.
Apesar de ter sido sempre influenciado por muito pensamento e arte muçulmanos (por exemplo, a sequência de quadros de Hamzanama feitos durante o reinado do imperador mongol Akbar; o Mantiq ul-Tair , ou a Conferência dos Pássaros, o poema épico-místico de Fariduddin Artar que é uma espécie de Pilgrim´s Progress islâmico; e a filosofia liberal do pensador árabe espanhol e erudito aristotélico Averróis, ou Ibn Rushd, em honra do qual o meu pai deu o nome à nossa família), acabei por perceber que em certos aspetos fui mais influenciado pelo mundo cristão do que pensava. Para começar, gosto de música. Muitos dos hinos estão para sempre gravados na minha memória, e ainda hoje sei cantar  o "O Come, All We Faithful", ou o "Adeste Fideles", em latim. 

(...)

Portanto: sim, a Arte, a Arquitetura, e a Música cristãs, até o Antigo Testamento penetraram fundo no meu ser, assim como as suas congéneres muçulmanas e hindus. (...)
Nada disso faz de mim um crente.
O meu ateísmo mantém-se intacto.
É algo que não vai mudar nesta vida de segunda oportunidade.

(...)

No rescaldo imediato dos homicídios da Charlie Hebdo, escrevi isto:
" A religião, uma forma antiga de sem-razão, quando combinada com o armamento moderno, torna-se uma verdadeira ameaça às nossas liberdades. O totalitarismo religioso provocou uma mutação mostífera no coração do Islão e vemos hoje as trágicas consequências em Paris. Eu estou ao lado da Charlie Hebdo, como todos devemos estar, na defesa da Arte da Sátira, que foi sempre uma foça a favor da liberdade e contra a tirania, a desonestidade e a estupidez. "O Respeito pela Religião" tornou-se uma frase codificada que significa " Medo da Religião". As Religiões, tal como todas as outras ideias, merecem crítica, sátira e , sim, o nosso intimorato desrespeito"

No caso do ataque contra mim desferido, eu substituiria a palavra "Tecnologia" por "Armamento", porque não há nada de moderno numa faca, e contudo, o meu atacante , é inteiramente produto das novas tecnologias da nossa era da informação, para a qual "Era da Desinformação" talvez fosse um nome mais rigoroso. Os gigantes da formação do pensamento de grupo, o YouTube, o Facebook e o Twitter, e os videojogos violentos foram os seus mestres.
Associado ao que parecia ser uma personalidade maleável, que encontrava no pensamento de grupo do islamismo radical uma estrutura para a identidade de que precisava, produziram uma personalidade que quase se tornou um assassino.


In, Faca
Salman Rushdie


 
  

Sem comentários:

Enviar um comentário