sábado, 27 de setembro de 2025

FACA, SALMAN RUSHDIE






Em fevereiro de 1989, o principal líder da Revolução Iraniana, aiatolá Ruhollah Khomeini, emitiu uma fatwa contra Salman Rushdie, ordenando que tanto o autor quanto a equipe que trabalhara na publicação do livro "Versículos satânicos" fossem assassinados. 

Com a publicação de Os Versos Satânicos, em 1988, Salman Rushdie virou um alvo ambulante.
O livro provocou fortes reações em países muçulmanos ao apresentar uma nova versão para uma lenda envolvendo o profeta Maomé. De acordo com este mito — não há comprovação histórica dos fatos — Maomé teria incluído versos pagãos no Alcorão, a Bíblia dos muçulmanos. Depois, o próprio profeta revogou os tais versos afirmando que sua inclusão tinha sido obra do diabo; daí a designação “versículos satânicos”. 

No livro de Rushdie, ele reconta essa lenda e credita os versos ao Anjo Gabriel, que os teria sussurrado a Maomé. 
Esta passagem – parte importante, mas ínfima no livro – foi responsável por despertar a ira de grande parte da comunidade islâmica. A obra foi proibida em muitos países com grandes populações muçulmanas, incluindo Irão, Índia, Bangladesh, Sudão, África do Sul, Sri Lanka, Quenia, Tailândia, Tanzânia, Indonésia, Singapura e Paquistão.

O livro The Satanic Verses tem pouca relação com religião e tem várias situações cómicas. 
Retrata a história fantástica de dois homens, actores indianos, que sobrevivem a um atentado terrorista no avião em que viajavam.  
A aeronave explode, mas ambos sobrevivem e chegam à Inglaterra de Margaret Thatcher. 
Lá, eles se transformam, um em anjo, e o outro em diabo, iniciando um jogo de contrastes na tentativa de se integrarem na sociedade britânica. Um é apolíneo, outro é dionisíaco; um é fortemente apegado às suas origens, outro quer conquistar a cidadania britânica rapidamente. 
Para falar sobre pertencimento e integração social, a história transita entre dilemas humanos em torno de como os conceitos bem e mal (ou certo e errado) podem ser dúbios.
Transitando livremente entre o real e o fantástico, entre o bem e o mal, entre a infinidade de opostos complementares e inconciliáveis da vida, este romance alegórico, impregnado de magia, é claramente autobiográfico no conjunto de seus episódios e, principalmente, na sua questão filosófica central: 
Quem sou eu?

No fundo, é uma obra profundamente autobiográfica, com referências aos questionamentos do autor sobre si próprio e suas origens. Nascido em Bombaim (atual Mumbai), na Índia colonial, Rushdie é filho de um advogado e uma professora. Seus pais o educaram em colégios britânicos e ele fez a faculdade em Cambridge, uma das mais respeitadas universidade inglesas. 
Após morar brevemente no Paquistão, passou a residir em Londres por várias décadas. 

Rushdie sempre se declarou ateu, mas já escreveu que considerava Maomé “um dos grandes génios da história mundial”. 
Ele declarou que o seu romance não é “um livro anti-religioso, mas uma tentativa de escrever sobre a imigração, suas tensões e transformações”. 
A triste ironia nas perseguições e ataques ao escritor está no fato de seus agressores — muito provavelmente — jamais terem lido Os Versos Satânicos, como foi o caso de Hadid Matar, de 27 anos, condenado a 25 anos de cadeia em Maio de 2025, e que confessou que nunca leu o livro, e que esfaqueou Salman Rushdie 15 vezes do dia 12 de Agosto de 2022 por causa da fatwa.

O líder do Irão, o aiatolá Khomeini, na ocasião, líder religioso à frente da teocracia xiita que governava o país desde 1979, emitiu uma fatwa em fevereiro de 1989, um decreto baseado nas leis islâmicas – nesse caso, conclamando qualquer muçulmano no mundo a cumprir a sentença de morte contra o autor de Os Versos Satânicos, obra considerada uma blasfémia pelos muçulmanos radicais. A fatwa funciona como um pronunciamento legal feito por qualquer especialista em lei islâmica para sanar dúvidas sobre como proceder em determinada situação. 
Uma recompensa financeira foi oferecida pela morte do escritor.

Embora o governo pró-reforma do presidente iraniano, Mohammad Khatami, tenha se distanciado da fatwa no fim da década de 1990, a recompensa multimilionária que pairava sobre a cabeça de Rushdie continuou a crescer e a fatwa nunca foi levantada.
O sucessor de Khomeini, o líder supremo, aiatolá Ali Khamenei, disse certa vez que a fatwa contra Rushdie era “irrevogável” porque só poderia ser anulada pelo próprio Khomeini, e como ele está morto, é perpétua.

A partir do decreto de Khomeini, foi alimentado um ódio generalizado e desenfreado contra o escritor, que sofreu uma série de atentados e foi forçado a se esconder no Reino Unido, sob proteção das autoridades de Londres, assim como da própria Scotland Yard.

Em muitos países islâmicos, a publicação do livro ainda é proibida, incluindo o Egito e os Emirados Árabes, além da Índia e do Paquistão. 
O caso contra o escritor causou um incidente diplomático e levou ao rompimento das relações cordiais entre o Reino Unido e o Irão. Além disso, a sentença de morte irrevogável contra  Rushdie atingiu também o mundo editorial em torno dele, assim como todos que entraram em contato com  “Os Versos Satânicos”.

Um editor norueguês foi baleado três vezes e sobreviveu.
Um tradudor italiano, esfaqueado em várias partes do corpo. 
Um alvo na Turquia escapou pelas escadas de incêndio de um hotel em chamas, onde 38 pessoas morreram no incêndio.
Um tradutor japonês foi assassinado.

Considerada uma blasfémia por fiéis do Islão, o livro Versículos Satânicos motivou várias ações violentas dirigidas aos seus tradutores e editores em diferentes países, depois de o ayatollah Ruhollah Khomeini, líder religioso do Irão, ter condenado Rushdie à morte, por decreto (fatwa), em 1989, sentença mais tarde estendida a todos os envolvidos na publicação do livro. 
A “vingança” custou a vida a mais de 40 pessoas e deixou outras a lutar pela sobrevivência.

Em julho de 1991, o académico japonês Hitoshi Igarashi, 44 anos, foi a primeira vítima mortal das “fatwas”. O tradutor da obra no Japão sofreu múltiplos golpes de faca na face e noutras partes do corpo, no interior do seu gabinete na universidade onde trabalhava. O assassino nunca foi encontrado.

Uns dias antes da morte de Igarashi, o tradutor de “Os Versículos Satânicos” para italiano, Ettore Capriolo, 61 anos, tinha sido esfaqueado na sua casa em Milão. Sofreu lesões graves no pescoço, no peito e nas mãos, mas resistiu aos ferimentos. O atacante nunca foi identificado.

Em outubro de 1993, o alvo foi o editor norueguês William Nygaard, alvejado pelas costas com três disparos, à porta de casa, nos subúrbios de Olso, quando se preparava para entrar no carro. Tinha, então, 50 anos e sobreviveu, depois de vários meses hospitalizado. Quase três décadas decorridas, a investigação ao caso ainda não está encerrada.

Meses antes, também falharam a tentativa de aniquilar o romancista Aziz Nesin, responsável pela tradução de um excerto do livro em turco, mas a estratégia adotada acabaria por provocar a morte de 38 pessoas. Um grupo de 33 pessoas, depois condenadas à morte, ateou fogo ao Hotel Madimak, na Turquia, no qual o escritor estava hospedado. Com 78 anos, ele conseguiu escapar pelas escadas de incêndio, mas as chamas apanharam muitos outros desprevenidos e o resultado foi uma tragédia que vitimou músicos, intelectuais e poetas.

Durante os 10 anos que esteve em parte incerta com protecão policial inglesa no Reino Unido, Salman Rushdie sofreu 6 tentativas de assassinato.
Em 1989, o terrorista Mustafa Mahmoud Mazeh explodiu acidentalmente num hotel no centro de Londres.Ele preparava um livro-bomba que seria usado para presentear e matar Rushdie.  
Num santuário para Mazeh, num cemitério de Teerã, há a inscrição: 
“O primeiro mártir a morrer numa missão para matar Salman Rushdie”. 


Por mais de trinta anos, Rushdie viveu sob a sombra dessa ameaça ― até 2022, quando foi esfaqueado.
Durante 10 anos o autor viveu escondido e sob proteção da polícia inglesa 24h por dia, até que se mudou de Londres para Nova Iorque em 2000, quando aparentemente já não corria risco, e viveu até 2022 em relativa paz (voos de avião eram cancelados pelas companhias aéreas, reservas nos restaurantes eram canceladas...tudo por medo de haver atentados contra Rushdie), até à manhã do dia 12 de agosto de 2022 em que foi esfaqueado 15 vezes pelo libanês-americano Hadid Matar de 27 anos. 
O escritor ficou entre a vida e a morte após sofrer perfurações múltiplas no peito, abdomen, face, braços e pescoço. Sobreviveu com lesões permanentes na mão esquerda e a perda do olho direito.


Depois de Versículos Satânicos, a sua vida transformou-se e ele nunca mais conseguiu levar uma rotina comum. Tinha que andar com escolta policial 24h por dia, e era obrigado a mudar-se com frequência (às vezes, não passava três dias no mesmo endereço). Nem os filhos sabiam onde ele estava.
Durante 10 anos no Reino Unido sob protecão policial inglesa, Rushdie sofreu 6 tentativas de assassinato.
A pressão era tanta que a sua mulher, a também autora Marianne Wiggins, pediu o divórcio.

Na Scotland Yard tinha um codinome, Joseph Anton. 
Durante anos, viveu nas sombras — sem deixar de publicar boa literatura.
“Joseph Anton — Memórias”, é o relato de Salman Rushdie e de sua longa fuga dos tentáculos dos “pistoleiros globais” enviados pelo Irão para matá-lo. 
É uma história dolorosa, muito bem contada, quase com sabor de ficção, mas é tudo verdade. 


"Fazia 33 anos e meio que o aiatolá Ruhollah Khomeini emitira sua notória sentença de morte contra mim e todos os envolvidos na publicação de Os versos satânicos, e confesso que durante esses anos às vezes imaginei que o meu assassino se ergueria de um dos muitos fóruns públicos e correria para cima de mim dessa forma. Então a primeira coisa que pensei ao ver o seu vulto assassino correndo até mim foi: Então és tu. Aqui estás. Dizem que as últimas palavras do escritor Henry James foram: “Então chegou afinal, a ilustríssima”. A morte estava a chegar para mim também, mas não me pareceu nada ilustre. Pareceu-me anacrónica."

in, A Faca  

 

Pela primeira vez desde o atentado, o autor compartilha a sua experiência de sobreviver ao pretenso destino. Dividido em duas partes, Faca narra, em detalhes inesquecíveis, os momentos imediatos que se sucederam ao ataque, bem como o processo de recuperação física e psicológica do escritor, do período no hospital aos esforços de reabilitação, passando pelo apoio essencial de sua esposa, Rachel Eliza Griffiths, e até por um diálogo imaginário com o agressor, culminando com o regresso ao lugar onde tudo aconteceu.
Neste livro absolutamente íntimo, Salman Rushdie se distancia dos universos muitas vezes fantásticos característicos de sua obra para explorar o que há de mais concreto na humanidade, sem jamais abrir mão da forma literária pela qual se consagrou.

"O mais revoltante sobre o atentado foi que me transformou outra vez em algo que eu tentara evitar com todas as forças. Por mais de trinta anos recusei-me a ser definido pela fatwa e insisti em ser visto como o autor dos meus livros — cinco antes da fatwa e dezasseis depois. Quase consegui. Quando os últimos livros foram publicados, as pessoas finalmente pararam de me perguntar sobre o ataque aos Versos satânicos e ao seu autor. E agora cá estou, arrastado de volta ao indesejado assunto. Acho hoje que nunca conseguirei escapar. A despeito do que já tenha escrito ou possa escrever agora, sempre serei o escritor que levou as facadas. A faca define-me. Travarei uma batalha contra isso, mas desconfio que serei derrotado.

Viver foi a minha vitória. Mas o significado que a faca dera à minha vida foi a minha derrota." 
in, A Faca 


Rushdie debruça-se sobre a violência marcada no seu corpo, na perda de um olho, nas marcas visíveis e invisíveis, em si e na sua família. Se vê vulnerável, humano, envergonhado pela fraqueza de seu corpo nu, fraco, idoso. Diminui-se ante a violência, sente culpa e medo, mais que raiva ou ódio. É quase como estar diante do próprio corpo na mesa de autópsia, passar a limpo as suas ações e omissões. 

Afinal, um jovem que nem era nascido quando a fatwa foi emitida, sem nunca ter lido um de seus livros, sem o conhecer, resolveu pôr em prática uma fé anacrónica e deturpada. 
O incompreensível ganha rosto, arma-se de faca, escolhe a vítima e, em nome de uma causa maior, veste-se de juiz e de executor.

"Sem a Arte, a nossa capacidade de pensar, de ver com olhar renovado e de renovar o nosso mundo murcharia e morreria. A arte não é um luxo. Reside na essência da nossa humanidade e não pede nenhuma proteção especial, exceto o direito de existir. Ela acata a discussão, a crítica e até a rejeição. Só não acata a violência. E no fim sobrevive àqueles que a oprimem."

 in, A Faca 



A ironia, que o autor faz questão de apontar logo no início do livro, é que o ataque aconteceu em cima do palco onde estava prestes a dar uma palestra sobre a importância de garantir a segurança dos escritores. 

Mas “Faca” não é apenas sobre o horror do ataque que sofreu ou mesmo a dificuldade da recuperação. Trata também do amor encarnado na dedicação da esposa e dos filhos, e ainda das contradições de uma humanidade que gera, de um lado, um homem capaz de cometer um crime terrível, e de outro, muitos dispostos a arriscar sem pestanejar as próprias vidas para proteger um ilustre desconhecido.

Rushdie afirma que a sua "faca é a linguagem"! 
"A linguagem é uma faca. Uma faca que pode partir o mundo em dois, revelar significados, mecanismos internos, segredos e verdades. Ela pode denunciar a estupidez, abrir nossos olhos, criar a beleza..."
in, A Faca 



Quando publicou “Faca – Meditações na sequência de uma tentativa de homicídio”, justificou a obra: 

“Compreendi que tinha de escrever este livro […] antes de poder passar a qualquer outra coisa. Escrever seria a minha maneira de possuir o que acontecera, assumir o seu controlo, torná-lo meu, recusar-me a ser uma mera vítima. Responderia à violência com a arte.” 
 
in, A Faca 


Rushdie, 76 anos, recebeu o prémio "Freedom to Publish" do British Book Awards em 15 de Maio de 2023.
A citation from Index to mark the award read: 
“We can only aspire to his intellectual curiosity, his generosity towards other writers and the level of courage he has always shown in facing down the enemies of free expression. Last year’s attempt on the life of Salman Rushdie was designed to silence one of the most important voices of our times. His survival is a tribute to his courage and determination.”

Philip Jones, chair of the British Book Awards judges and editor of The Bookseller, said: 
“There can scarcely be a more important winner of this prize at a more important moment. Freedom to Publish is about the right to read, write, speak and hear without interference, and without the dire consequences so often now threatened by those who would restrict, censor and circumscribe. More than most, Rushdie has lived his defiance, and continues to pay a huge price for it. His cause belongs to all of us.”





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