segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Nothing Twice


Sergei Nechaev
 
 

Nothing can ever happen twice.
In consequence, the sorry fact is
that we arrive here improvised
and leave without the chance to practice.

Even if there is no one dumber,
if you’re the planet’s biggest dunce,
you can’t repeat the class in summer:
this course is only offered once.

No day copies yesterday,
no two nights will teach what bliss is
in precisely the same way,
with precisely the same kisses.

One day, perhaps some idle tongue
mentions your name by accident:
I feel as if a rose were flung
into the room, all hue and scent.

The next day, though you’re here with me,
I can’t help looking at the clock:
A rose? A rose? What could that be?
Is it a flower or a rock?

Why do we treat the fleeting day
with so much needless fear and sorrow?
It’s in its nature not to stay:
Today is always gone tomorrow.

With smiles and kisses, we prefer
to seek accord beneath our star,
although we’re different (we concur)
just as two drops of water are.


Wislawa Szymborska
in, Poems New and Collected: 1957–1997




A Última Discussão Sobre Deus...Salman Rushdie







 "(...) a minha vida tinha sido transformada pela violência desencadeada por uma falsa narrativa, compreendi que a minha vida de segunda oportunidade não podia contentar-se unicamente com prazeres privados. O Amor sobre todas as coisas, e o trabalho, claro, mas havia uma guerra a travar em muitas frentes - contra o fanático revisionismo que procurava reescrever a história, quer em Nova Deli, quer na Flórida; contra os cínicos poderes que procuravam apagar os dois pecados originais dos EUA, a Escravatura e a Opressão, e o Genocídio dos habitantes nativos do continente(...); contra as autodestruidoras mentiras que tinham feito a Grã-Bretanha sair da Europa.
Eu não podia ficar ociosamente quieto enquanto estas batalhas grassavam.
Nesta luta, também, eu iria - tinha de o fazer - manter-me envolvido.

Havia, contudo, uma discussão que não me interessava levar além:
A discussão que tinha atormentado a minha vida.
A discussão acerca de Deus.

Expressarei aqui, pela última vez, a minha opinião sobre a religião - qualquer religião, todas as religiões - e depois disso, pela parte que me toca, acabou-se.

Não acredito na "prova das coisas não vistas".
Não sou religioso.
Venho de uma família de gente maioritariamente irreligiosa ( a minha irmã mais nova, Nabeelah, que morreu prematuramente, era a exceção, era profundamente religiosa)
Eu nunca senti necessidade da fé religiosa para me ajudar a compreender e enfrentar o mundo. 
Compreendo, porém, que para muitas pessoas a religião forneça uma âncora moral e pareça essencial. 

E, na minha opinião, a fé privada de uma pessoa não é da conta de ninguém a não ser da pessoa em causa. 
Não tenho nada contra a religião quando ela ocupa esse espaço privado e não tenta impor os seus valores aos outros. Contudo, quando a religião é politizada , armamentizada, passa a ser da conta de todos, devido à sua capacidade de causar dano.

Lembro-me sempre de que na época do Iluminismo francês o inimigo na luta pela liberdade não era tanto o Estado como a Igreja. A Igreja Católica , com o seu arsenal de armas - a blasfémia, o anátema, a excomunhão, bem como as reais armas de tortura nas mãos da Inquisição - dedicava-se a colocar os seus rígidos limites ao pensamento. Até aqui e não mais além. E os escritores e filósofos do Iluminismo dedicavam-se a desafiar essa autoridade e a infringir essas restrições. Dessa luta derivaram as ideias que Thomas Paine trouxe para a América e que constituíram a base dos ensaios Senso Comum e a Crise Americana, que inspiraram  o movimento independentista, os Pais Fundadores, e o conceito moderno de Direitos Humanos.

Na Índia, no rescaldo do banho de sangue dos massacres da Partição que alastraram pelo subcontinente na altura da independência do domínio britânico e da criação dos estados da Índia e do Paquistão - hindus massacrados por muçulmanos, muçulmanos por hindus, algures entre um e dois milhões de mortos - outro grupo de pais fundadores, chefiado por Mahatma Gandhi e Jawahartal Nehru, resolveu que a única maneira de assegurar a paz na Índia era retirar a religião da esfera pública. a nova Constituição da Índia era, por conseguinte, totalmente secular na linguagem e na intenção, e isso perdurou até ao momento presente, em que a atual administração procura minar esses fundamentos seculares, desacreditar esses fundadores e criar um estado manifestamente religioso, maioritariamente hindu.

Quando os crentes acreditam que aquilo em que acreditam deve ser imposto a outros que não acreditam nisso, ou quando acreditam que aos não crentes se deve proibir a sadia ou humorística expressão da sua não crença, há um problema.
 
A armamentização do cristianismo nos EUA resultou na revogação de Roe contra Wade e na batalha em curso sobre o aborto e o direito da mulher a escolher.  Como disse atrás, a armamentização de uma espécie de hinduísmo radical pelos atuais dirigentes indianos levou a muitos distúrbios sectários, e até à violência. E a armamentização do Islão por todo o mundo levou diretamente aos reinados do terror dos talibãs e dos aiatolas, à asfixiante sociedade da Arábia Saudita, ao esfaqueamento de Naguib Mahfouz, aos ataques à liberdade de pensamento e à opressão das mulheres em muitos estados islâmicos e, para colocar as coisas em termos pessoais, ao esfaqueamento de que fui vítima.

Muitas pessoas, tanto liberais como conservadores, veem-se em dificuldades quando se lhes pede para criticar a religião. Mas, se pudéssemos simplesmente fazer a distinção entre a crença religiosa privada e pública, seria mais fácil ver as coisas tal como são e falar abertamente sem receio de ofender sensibilidades. 

Na vida privada, cada um acredita no que quer. No turbulento mundo da política e da vida pública, porém, não há ideias que possam ser couraçadas e protegidas da crítica.

Todas as religiões se preocupam com histórias das origens, relatos da criação do mundo por um ou muitos seres sobrenaturais. Esta é a minha história das origens sobre as religiões em si. 
Imagino que há muito tempo, antes de os nossos primitivos antepassados terem qualquer entendimento científico do Universo, quando acreditavam que vivíamos debaixo de um disco, com a luz do Sol a brilhar através dos buracos desse disco, e histórias que tais, procuravam respostas fabulísticas para as grandes questões existenciais - como viemos aqui parar? Como foi que o aqui veio aqui parar? - e, surgiu o conceito de um deus ou deuses do céu, um Pai Criador ou um panteão desses seres.
Depois, quando esses antepassados procuraram codificar ideias de comportamento certo e errado, próprio e impróprio, ao colocarem a si próprios a grande questão subsequente, Agora que aqui estamos, como devemos viver?. os deuses do céu, os deuses do Valhalla, os deuses do Kailasa, começaram a ser também árbitros morais (embora, nas religiões panteístas, o extenso rol de divindades contivesse muitas que não se comportavam particularmente bem, das quais não se pode dizer que sejam brilhantes exemplos morais). 

Durante muito tempo encarei este hipotético passado como algo semelhante à infância da raça humana, quando esses nossos parentes afastados precisavam de deuses da mesma maneira que as crianças precisavam de pais , para explicarem a sua própria existência e ditarem-lhes regras e limites para crescerem dentro do seu âmbito.

(...)

Nós já não precisamos das figuras paternais de um Criador ou Criadores para explicar o Universo, ou a nossa Evolução Humana para aquilo que somos hoje. E nós...ou, deixem que o diga modestamente, eu - não tenho necessidade de mandamentos, papas ou homens-deuses de nenhuma espécie que me ditem a minha moral. Tenho o meu próprio sentido ético, obrigado. Não foi Deus que nos deu a moralidade. NÓS é que criámos Deus para encarnar os nossos instintos morais.

Tenho mais uma coisa a dizer, que nunca disse antes.
Apesar de ter sido sempre influenciado por muito pensamento e arte muçulmanos (por exemplo, a sequência de quadros de Hamzanama feitos durante o reinado do imperador mongol Akbar; o Mantiq ul-Tair , ou a Conferência dos Pássaros, o poema épico-místico de Fariduddin Artar que é uma espécie de Pilgrim´s Progress islâmico; e a filosofia liberal do pensador árabe espanhol e erudito aristotélico Averróis, ou Ibn Rushd, em honra do qual o meu pai deu o nome à nossa família), acabei por perceber que em certos aspetos fui mais influenciado pelo mundo cristão do que pensava. Para começar, gosto de música. Muitos dos hinos estão para sempre gravados na minha memória, e ainda hoje sei cantar  o "O Come, All We Faithful", ou o "Adeste Fideles", em latim. 

(...)

Portanto: sim, a Arte, a Arquitetura, e a Música cristãs, até o Antigo Testamento penetraram fundo no meu ser, assim como as suas congéneres muçulmanas e hindus. (...)
Nada disso faz de mim um crente.
O meu ateísmo mantém-se intacto.
É algo que não vai mudar nesta vida de segunda oportunidade.

(...)

No rescaldo imediato dos homicídios da Charlie Hebdo, escrevi isto:
" A religião, uma forma antiga de sem-razão, quando combinada com o armamento moderno, torna-se uma verdadeira ameaça às nossas liberdades. O totalitarismo religioso provocou uma mutação mostífera no coração do Islão e vemos hoje as trágicas consequências em Paris. Eu estou ao lado da Charlie Hebdo, como todos devemos estar, na defesa da Arte da Sátira, que foi sempre uma foça a favor da liberdade e contra a tirania, a desonestidade e a estupidez. "O Respeito pela Religião" tornou-se uma frase codificada que significa " Medo da Religião". As Religiões, tal como todas as outras ideias, merecem crítica, sátira e , sim, o nosso intimorato desrespeito"

No caso do ataque contra mim desferido, eu substituiria a palavra "Tecnologia" por "Armamento", porque não há nada de moderno numa faca, e contudo, o meu atacante , é inteiramente produto das novas tecnologias da nossa era da informação, para a qual "Era da Desinformação" talvez fosse um nome mais rigoroso. Os gigantes da formação do pensamento de grupo, o YouTube, o Facebook e o Twitter, e os videojogos violentos foram os seus mestres.
Associado ao que parecia ser uma personalidade maleável, que encontrava no pensamento de grupo do islamismo radical uma estrutura para a identidade de que precisava, produziram uma personalidade que quase se tornou um assassino.


In, Faca
Salman Rushdie


 
  

domingo, 28 de setembro de 2025

O quarto

 




Quem te pôs a mão no ombro,
a faca que te atravessou o coração,
são feridas alheias, talvez algo que leste;
entretanto partiste
para lugares menos iluminados
e corações menos vulneráveis,
pode perguntar-se é o que fazes ainda aqui
se já cá não estás.
A hora havia de chegar em que
nos perderíamos um do outro.
E acabaríamos necessariamente assim,
mortos inventariando mortos.
Morrer, porém, não é fácil,
ficam sombras nem sequer as nossas,
e a nossa voz fala-nos
numa língua estrangeira.
Apaga a luz e vira-te para o outro lado
e acorda amanhã como novo,
barba impecavelmente feita,
o dia um sonho sólido onde a noite se limpa e se deita.


Manuel António Pina




Faca...Salman Rushdie...Excertos

 




 

" Estava na minha cidade [hospital] mas por enquanto não fazia completamente parte dela. A Faca tinha-me separado do meu mundo, arredara-me brutalmente e colocara-me nesta cama berradora.
Durante estas vazias noites sem dormir, pensava muito na Faca como ideia.
Quando uma faca pratica o primeiro corte num bolo de noiva, isso faz parte do ritual pela qual duas pessoas se unem. Uma faca de cozinha é uma parte essencial do ato criativo da culinária. Um canivete suíço é um auxiliar, capaz de executar muitas pequenas mas necessárias tarefas, tais como abrir uma garrafa de cerveja. A navalha de Occam é uma faca conceptual, uma faca em teoria, que elimina uma porção de disparates incitando-nos a preferir as explicações mais simples possíveis às mais complexas para as coisas. Por outras palavras, uma faca é um utensílio, e adquire significado pelo uso que dela fazemos. É moralmente neutra. O que é imoral é o uso indevido das facas, 
Mas, não era isto a mesma coisa que dizer "as armas de fogo não matam gente, quem mata gente são as pessoas? Estaria eu a cair numa armadilha familiar?
Não. Porque uma arma de fogo tinha apenas um emprego, um propósito. Não se podia cortar um bolo com uma Glock, nem cozinhar com uma AR-51, nem abrir uma garrafa de cerveja com a Walther PPK favorita de James Bond. A única maneira de estar no mundo de uma arma de fogo era a violência; o seu único propósito era causar dano, e mesmo tirar vidas, animais ou humanas.
Uma faca não era como uma arma de fogo"

" A Linguagem era também uma faca.
Podia abrir o mundo e revelar o seu significado, o seu funcionamento interior, os seus segredos, as suas verdades. Podia passar por cima de uma realidade para outra. Podia denunciar baboseiras, abrir os olhos das pessoas, criar beleza. 
A Linguagem era a minha faca.
Se eu tivesse sido inesperadamente apanhado numa involuntária luta com facas, talvez fosse esta a faca que utilizasse para ripostar. Podia ser o utensílio que usaria para refazer e reclamar o meu mundo, para reconstruir a moldura em que a minha imagem do mundo pudesse mais uma vez estar pendurada na minha parede, para gerir o que me tinha acontecido, assenhorar-me dele, fazê-lo meu."

"A Arte desafia a ortodoxia.
Rejeitar ou denegrir a Arte pelo facto de ela o fazer é não compreender a sua natureza.
A Arte coloca a apaixonada visão pessoal do artista em contraponto com as ideias aceites do seu tempo. A Arte sabe que as ideias aceites são inimigas da Arte, como nos disse Flaubert em Bouvard et Pécuchet. Os clichés são ideias aceites, e também as ideologias o são, tanto aquelas que dependem da sanção dos invisíveis deuses do céu como as que não. Sem a Arte, a nossa capacidade de pensar, de ver com frescura e de renovar o nosso mundo estiolaria e morreria. 
A Arte não é um luxo.
Está na essência da nossa humanidade e não requer proteção especial a não ser o direito de existir.
Aceita a discussão, a crítica, até a rejeição. Não aceita a violência.
E no fim, sobrevive àqueles que a oprimem."

 
in, Faca
Salman Rushdie



sábado, 27 de setembro de 2025

FACA, SALMAN RUSHDIE






Em fevereiro de 1989, o principal líder da Revolução Iraniana, aiatolá Ruhollah Khomeini, emitiu uma fatwa contra Salman Rushdie, ordenando que tanto o autor quanto a equipe que trabalhara na publicação do livro "Versículos satânicos" fossem assassinados. 

Com a publicação de Os Versos Satânicos, em 1988, Salman Rushdie virou um alvo ambulante.
O livro provocou fortes reações em países muçulmanos ao apresentar uma nova versão para uma lenda envolvendo o profeta Maomé. De acordo com este mito — não há comprovação histórica dos fatos — Maomé teria incluído versos pagãos no Alcorão, a Bíblia dos muçulmanos. Depois, o próprio profeta revogou os tais versos afirmando que sua inclusão tinha sido obra do diabo; daí a designação “versículos satânicos”. 

No livro de Rushdie, ele reconta essa lenda e credita os versos ao Anjo Gabriel, que os teria sussurrado a Maomé. 
Esta passagem – parte importante, mas ínfima no livro – foi responsável por despertar a ira de grande parte da comunidade islâmica. A obra foi proibida em muitos países com grandes populações muçulmanas, incluindo Irão, Índia, Bangladesh, Sudão, África do Sul, Sri Lanka, Quenia, Tailândia, Tanzânia, Indonésia, Singapura e Paquistão.

O livro The Satanic Verses tem pouca relação com religião e tem várias situações cómicas. 
Retrata a história fantástica de dois homens, actores indianos, que sobrevivem a um atentado terrorista no avião em que viajavam.  
A aeronave explode, mas ambos sobrevivem e chegam à Inglaterra de Margaret Thatcher. 
Lá, eles se transformam, um em anjo, e o outro em diabo, iniciando um jogo de contrastes na tentativa de se integrarem na sociedade britânica. Um é apolíneo, outro é dionisíaco; um é fortemente apegado às suas origens, outro quer conquistar a cidadania britânica rapidamente. 
Para falar sobre pertencimento e integração social, a história transita entre dilemas humanos em torno de como os conceitos bem e mal (ou certo e errado) podem ser dúbios.
Transitando livremente entre o real e o fantástico, entre o bem e o mal, entre a infinidade de opostos complementares e inconciliáveis da vida, este romance alegórico, impregnado de magia, é claramente autobiográfico no conjunto de seus episódios e, principalmente, na sua questão filosófica central: 
Quem sou eu?

No fundo, é uma obra profundamente autobiográfica, com referências aos questionamentos do autor sobre si próprio e suas origens. Nascido em Bombaim (atual Mumbai), na Índia colonial, Rushdie é filho de um advogado e uma professora. Seus pais o educaram em colégios britânicos e ele fez a faculdade em Cambridge, uma das mais respeitadas universidade inglesas. 
Após morar brevemente no Paquistão, passou a residir em Londres por várias décadas. 

Rushdie sempre se declarou ateu, mas já escreveu que considerava Maomé “um dos grandes génios da história mundial”. 
Ele declarou que o seu romance não é “um livro anti-religioso, mas uma tentativa de escrever sobre a imigração, suas tensões e transformações”. 
A triste ironia nas perseguições e ataques ao escritor está no fato de seus agressores — muito provavelmente — jamais terem lido Os Versos Satânicos, como foi o caso de Hadid Matar, de 27 anos, condenado a 25 anos de cadeia em Maio de 2025, e que confessou que nunca leu o livro, e que esfaqueou Salman Rushdie 15 vezes do dia 12 de Agosto de 2022 por causa da fatwa.

O líder do Irão, o aiatolá Khomeini, na ocasião, líder religioso à frente da teocracia xiita que governava o país desde 1979, emitiu uma fatwa em fevereiro de 1989, um decreto baseado nas leis islâmicas – nesse caso, conclamando qualquer muçulmano no mundo a cumprir a sentença de morte contra o autor de Os Versos Satânicos, obra considerada uma blasfémia pelos muçulmanos radicais. A fatwa funciona como um pronunciamento legal feito por qualquer especialista em lei islâmica para sanar dúvidas sobre como proceder em determinada situação. 
Uma recompensa financeira foi oferecida pela morte do escritor.

Embora o governo pró-reforma do presidente iraniano, Mohammad Khatami, tenha se distanciado da fatwa no fim da década de 1990, a recompensa multimilionária que pairava sobre a cabeça de Rushdie continuou a crescer e a fatwa nunca foi levantada.
O sucessor de Khomeini, o líder supremo, aiatolá Ali Khamenei, disse certa vez que a fatwa contra Rushdie era “irrevogável” porque só poderia ser anulada pelo próprio Khomeini, e como ele está morto, é perpétua.

A partir do decreto de Khomeini, foi alimentado um ódio generalizado e desenfreado contra o escritor, que sofreu uma série de atentados e foi forçado a se esconder no Reino Unido, sob proteção das autoridades de Londres, assim como da própria Scotland Yard.

Em muitos países islâmicos, a publicação do livro ainda é proibida, incluindo o Egito e os Emirados Árabes, além da Índia e do Paquistão. 
O caso contra o escritor causou um incidente diplomático e levou ao rompimento das relações cordiais entre o Reino Unido e o Irão. Além disso, a sentença de morte irrevogável contra  Rushdie atingiu também o mundo editorial em torno dele, assim como todos que entraram em contato com  “Os Versos Satânicos”.

Um editor norueguês foi baleado três vezes e sobreviveu.
Um tradudor italiano, esfaqueado em várias partes do corpo. 
Um alvo na Turquia escapou pelas escadas de incêndio de um hotel em chamas, onde 38 pessoas morreram no incêndio.
Um tradutor japonês foi assassinado.

Considerada uma blasfémia por fiéis do Islão, o livro Versículos Satânicos motivou várias ações violentas dirigidas aos seus tradutores e editores em diferentes países, depois de o ayatollah Ruhollah Khomeini, líder religioso do Irão, ter condenado Rushdie à morte, por decreto (fatwa), em 1989, sentença mais tarde estendida a todos os envolvidos na publicação do livro. 
A “vingança” custou a vida a mais de 40 pessoas e deixou outras a lutar pela sobrevivência.

Em julho de 1991, o académico japonês Hitoshi Igarashi, 44 anos, foi a primeira vítima mortal das “fatwas”. O tradutor da obra no Japão sofreu múltiplos golpes de faca na face e noutras partes do corpo, no interior do seu gabinete na universidade onde trabalhava. O assassino nunca foi encontrado.

Uns dias antes da morte de Igarashi, o tradutor de “Os Versículos Satânicos” para italiano, Ettore Capriolo, 61 anos, tinha sido esfaqueado na sua casa em Milão. Sofreu lesões graves no pescoço, no peito e nas mãos, mas resistiu aos ferimentos. O atacante nunca foi identificado.

Em outubro de 1993, o alvo foi o editor norueguês William Nygaard, alvejado pelas costas com três disparos, à porta de casa, nos subúrbios de Olso, quando se preparava para entrar no carro. Tinha, então, 50 anos e sobreviveu, depois de vários meses hospitalizado. Quase três décadas decorridas, a investigação ao caso ainda não está encerrada.

Meses antes, também falharam a tentativa de aniquilar o romancista Aziz Nesin, responsável pela tradução de um excerto do livro em turco, mas a estratégia adotada acabaria por provocar a morte de 38 pessoas. Um grupo de 33 pessoas, depois condenadas à morte, ateou fogo ao Hotel Madimak, na Turquia, no qual o escritor estava hospedado. Com 78 anos, ele conseguiu escapar pelas escadas de incêndio, mas as chamas apanharam muitos outros desprevenidos e o resultado foi uma tragédia que vitimou músicos, intelectuais e poetas.

Durante os 10 anos que esteve em parte incerta com protecão policial inglesa no Reino Unido, Salman Rushdie sofreu 6 tentativas de assassinato.
Em 1989, o terrorista Mustafa Mahmoud Mazeh explodiu acidentalmente num hotel no centro de Londres.Ele preparava um livro-bomba que seria usado para presentear e matar Rushdie.  
Num santuário para Mazeh, num cemitério de Teerã, há a inscrição: 
“O primeiro mártir a morrer numa missão para matar Salman Rushdie”. 


Por mais de trinta anos, Rushdie viveu sob a sombra dessa ameaça ― até 2022, quando foi esfaqueado.
Durante 10 anos o autor viveu escondido e sob proteção da polícia inglesa 24h por dia, até que se mudou de Londres para Nova Iorque em 2000, quando aparentemente já não corria risco, e viveu até 2022 em relativa paz (voos de avião eram cancelados pelas companhias aéreas, reservas nos restaurantes eram canceladas...tudo por medo de haver atentados contra Rushdie), até à manhã do dia 12 de agosto de 2022 em que foi esfaqueado 15 vezes pelo libanês-americano Hadid Matar de 27 anos. 
O escritor ficou entre a vida e a morte após sofrer perfurações múltiplas no peito, abdomen, face, braços e pescoço. Sobreviveu com lesões permanentes na mão esquerda e a perda do olho direito.


Depois de Versículos Satânicos, a sua vida transformou-se e ele nunca mais conseguiu levar uma rotina comum. Tinha que andar com escolta policial 24h por dia, e era obrigado a mudar-se com frequência (às vezes, não passava três dias no mesmo endereço). Nem os filhos sabiam onde ele estava.
Durante 10 anos no Reino Unido sob protecão policial inglesa, Rushdie sofreu 6 tentativas de assassinato.
A pressão era tanta que a sua mulher, a também autora Marianne Wiggins, pediu o divórcio.

Na Scotland Yard tinha um codinome, Joseph Anton. 
Durante anos, viveu nas sombras — sem deixar de publicar boa literatura.
“Joseph Anton — Memórias”, é o relato de Salman Rushdie e de sua longa fuga dos tentáculos dos “pistoleiros globais” enviados pelo Irão para matá-lo. 
É uma história dolorosa, muito bem contada, quase com sabor de ficção, mas é tudo verdade. 


"Fazia 33 anos e meio que o aiatolá Ruhollah Khomeini emitira sua notória sentença de morte contra mim e todos os envolvidos na publicação de Os versos satânicos, e confesso que durante esses anos às vezes imaginei que o meu assassino se ergueria de um dos muitos fóruns públicos e correria para cima de mim dessa forma. Então a primeira coisa que pensei ao ver o seu vulto assassino correndo até mim foi: Então és tu. Aqui estás. Dizem que as últimas palavras do escritor Henry James foram: “Então chegou afinal, a ilustríssima”. A morte estava a chegar para mim também, mas não me pareceu nada ilustre. Pareceu-me anacrónica."

in, A Faca  

 

Pela primeira vez desde o atentado, o autor compartilha a sua experiência de sobreviver ao pretenso destino. Dividido em duas partes, Faca narra, em detalhes inesquecíveis, os momentos imediatos que se sucederam ao ataque, bem como o processo de recuperação física e psicológica do escritor, do período no hospital aos esforços de reabilitação, passando pelo apoio essencial de sua esposa, Rachel Eliza Griffiths, e até por um diálogo imaginário com o agressor, culminando com o regresso ao lugar onde tudo aconteceu.
Neste livro absolutamente íntimo, Salman Rushdie se distancia dos universos muitas vezes fantásticos característicos de sua obra para explorar o que há de mais concreto na humanidade, sem jamais abrir mão da forma literária pela qual se consagrou.

"O mais revoltante sobre o atentado foi que me transformou outra vez em algo que eu tentara evitar com todas as forças. Por mais de trinta anos recusei-me a ser definido pela fatwa e insisti em ser visto como o autor dos meus livros — cinco antes da fatwa e dezasseis depois. Quase consegui. Quando os últimos livros foram publicados, as pessoas finalmente pararam de me perguntar sobre o ataque aos Versos satânicos e ao seu autor. E agora cá estou, arrastado de volta ao indesejado assunto. Acho hoje que nunca conseguirei escapar. A despeito do que já tenha escrito ou possa escrever agora, sempre serei o escritor que levou as facadas. A faca define-me. Travarei uma batalha contra isso, mas desconfio que serei derrotado.

Viver foi a minha vitória. Mas o significado que a faca dera à minha vida foi a minha derrota." 
in, A Faca 


Rushdie debruça-se sobre a violência marcada no seu corpo, na perda de um olho, nas marcas visíveis e invisíveis, em si e na sua família. Se vê vulnerável, humano, envergonhado pela fraqueza de seu corpo nu, fraco, idoso. Diminui-se ante a violência, sente culpa e medo, mais que raiva ou ódio. É quase como estar diante do próprio corpo na mesa de autópsia, passar a limpo as suas ações e omissões. 

Afinal, um jovem que nem era nascido quando a fatwa foi emitida, sem nunca ter lido um de seus livros, sem o conhecer, resolveu pôr em prática uma fé anacrónica e deturpada. 
O incompreensível ganha rosto, arma-se de faca, escolhe a vítima e, em nome de uma causa maior, veste-se de juiz e de executor.

"Sem a Arte, a nossa capacidade de pensar, de ver com olhar renovado e de renovar o nosso mundo murcharia e morreria. A arte não é um luxo. Reside na essência da nossa humanidade e não pede nenhuma proteção especial, exceto o direito de existir. Ela acata a discussão, a crítica e até a rejeição. Só não acata a violência. E no fim sobrevive àqueles que a oprimem."

 in, A Faca 



A ironia, que o autor faz questão de apontar logo no início do livro, é que o ataque aconteceu em cima do palco onde estava prestes a dar uma palestra sobre a importância de garantir a segurança dos escritores. 

Mas “Faca” não é apenas sobre o horror do ataque que sofreu ou mesmo a dificuldade da recuperação. Trata também do amor encarnado na dedicação da esposa e dos filhos, e ainda das contradições de uma humanidade que gera, de um lado, um homem capaz de cometer um crime terrível, e de outro, muitos dispostos a arriscar sem pestanejar as próprias vidas para proteger um ilustre desconhecido.

Rushdie afirma que a sua "faca é a linguagem"! 
"A linguagem é uma faca. Uma faca que pode partir o mundo em dois, revelar significados, mecanismos internos, segredos e verdades. Ela pode denunciar a estupidez, abrir nossos olhos, criar a beleza..."
in, A Faca 



Quando publicou “Faca – Meditações na sequência de uma tentativa de homicídio”, justificou a obra: 

“Compreendi que tinha de escrever este livro […] antes de poder passar a qualquer outra coisa. Escrever seria a minha maneira de possuir o que acontecera, assumir o seu controlo, torná-lo meu, recusar-me a ser uma mera vítima. Responderia à violência com a arte.” 
 
in, A Faca 


Rushdie, 76 anos, recebeu o prémio "Freedom to Publish" do British Book Awards em 15 de Maio de 2023.
A citation from Index to mark the award read: 
“We can only aspire to his intellectual curiosity, his generosity towards other writers and the level of courage he has always shown in facing down the enemies of free expression. Last year’s attempt on the life of Salman Rushdie was designed to silence one of the most important voices of our times. His survival is a tribute to his courage and determination.”

Philip Jones, chair of the British Book Awards judges and editor of The Bookseller, said: 
“There can scarcely be a more important winner of this prize at a more important moment. Freedom to Publish is about the right to read, write, speak and hear without interference, and without the dire consequences so often now threatened by those who would restrict, censor and circumscribe. More than most, Rushdie has lived his defiance, and continues to pay a huge price for it. His cause belongs to all of us.”