Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida. Viver é uma espécie de loucura que
a morte faz. Vivam os mortos porque neles vivemos.
De repente as coisas não precisam mais fazer sentido. Satisfaço- -me em ser. Tu és? Tenho certeza que sim. O não sentido das coisas me faz ter um sorriso de complacência. De certo tudo deve estar sendo o que é. Hoje está um dia de nada.
Hoje é zero hora. Existe por acaso um
número que não é nada? que é menos que zero? que começa no
que nunca começou porque sempre era? e era antes de sempre?
Ligo-me a esta ausência vital e rejuvenesço-me todo, ao mesmo
tempo contido e total. Redondo sem início e sem fim, eu sou o
ponto antes do zero e do ponto final. Do zero ao infinito vou caminhando sem parar. Mas ao mesmo tempo tudo é tão fugaz. Eu
sempre fui e imediatamente não era mais. O dia corre lá fora à toa
e há abismos de silêncio em mim. A sombra de minha alma é o corpo. O corpo é a sombra de minha alma. Este livro é a sombra de
mim. Peço vênia para passar. Eu me sinto culpado quando não vos
obedeço. Sou feliz na hora errada. Infeliz quando todos dançam.
Me disseram que os aleijados se rejubilam assim como me disseram que os cegos se alegram. É que os infelizes se compensam.
Nunca a vida foi tão atual como hoje: por um triz é o futuro.
Tempo para mim significa a desagregação da matéria. O apodrecimento do que é orgânico como se o tempo tivesse como um verme
dentro de um fruto e fosse roubando a este fruto toda a sua polpa.
O tempo não existe. O que chamamos de tempo é o movimento de evolução das coisas, mas o tempo em si não existe. Ou existe imutável e nele nos transladamos. O tempo passa depressa demais e a
vida é tão curta. Então — para que eu não seja engolido pela voracidade das horas e pelas novidades que fazem o tempo passar depressa — eu cultivo um certo tédio. Degusto assim cada detestável
minuto. E cultivo também o vazio silêncio da eternidade da espécie. Quero viver muitos minutos num só minuto. Quero me multiplicar para poder abranger até áreas desérticas que dão a idéia de
imobilidade eterna. Na eternidade não existe o tempo. Noite e dia
são contrários porque são o tempo e o tempo não se divide. De
agora em diante o tempo vai ser sempre atual. Hoje é hoje. Espanto-me ao mesmo tempo desconfiado por tanto me ser dado.
E amanhã eu vou ter de novo um hoje. Há algo de dor e pungência em viver o hoje. O paroxismo da mais fina e extrema nota de violino insistente. Mas há o hábito e o hábito anestesia. O aguilhão de abelha do dia florescente de hoje. Graças a Deus, tenho o que comer. O pão nosso de cada dia.
Eu queria escrever um livro. Mas onde estão as palavras? esgotaram-se os significados. Como surdos e mudos comunicamo-nos
com as mãos. Eu queria que me dessem licença para eu escrever
ao som harpejado e agreste a sucata da palavra. E prescindir de ser
discursivo. Assim: poluição.
Escrevo ou não escrevo?Saber desistir. Abandonar ou não abandonar — esta é muitas vezes a questão para um jogador. A arte de abandonar não é ensinada a ninguém. E está longe de ser rara a situação angustiosa em que devo decidir se há algum sentido em prosseguir jogando. Serei capaz de abandonar nobremente? Ou sou daqueles que prosseguem teimosamente esperando que aconteça alguma coisa? Como, digamos, o próprio fim do mundo? Ou seja lá o que for, como a minha morte súbita, hipótese que tornaria supérflua a minha desistência?
Eu não quero apostar corrida comigo mesmo. Um fato. O que é
que se torna fato? Devo-me interessar pelo acontecimento? Será
que desço tanto a ponto de encher as páginas com informações sobre os «fatos»? Devo imaginar uma história ou dou largas à inspiração caótica? Tanta falsa inspiração. E quando vem a verdadeira e eu não tomo conhecimento dela? Será horrível demais querer se
aproximar dentro de si mesmo do límpido eu? Sim, e é quando o
eu passa a não existir mais, a não reivindicar nada, passa a fazer
parte da árvore da vida — é por isso que luto por alcançar. Esquecer-se de si mesmo e no entanto viver tão intensamente.
Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto — e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar. Para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente. Mas é um vazio terrivelmente perigoso: dele arranco sangue. Sou um escritor que tem medo da cilada das palavras: as palavras que digo escondem outras — quais? talvez as diga. Escrever é uma pedra lançada no poço fundo.
Meditação leve e terna sobre o nada. Escrevo quase que totalmente liberto de meu corpo. É como se este estivesse em levitação.
Meu espírito está vazio por causa de tanta felicidade. Estou tendo
uma liberdade íntima que só se compara a um cavalgar sem destino pelos campos afora. Estou livre de destino. Será o meu destino
alcançar a liberdade? não há uma ruga no meu espírito que se espraia em leves espumas. Não estou mais acossado. Isto é a graça.
Estou ouvindo música. Debussy usa as espumas do mar morrendo na areia, refluindo e fluindo. Bach é matemático. Mozart é o
divino impessoal. Chopin conta a sua vida mais íntima. Schoenberg, através de seu eu, atinge o clássico eu de todo o mundo. Beethoven é a emulsão humana em tempestade procurando o divino e
só o alcançando na morte. Quanto a mim, que não peço música, só
chego ao limiar da palavra nova. Sem coragem de expô-la. Meu
vocabulário é triste e às vezes wagneriano-polifônico-paranóico.
Escrevo muito simples e muito nu. Por isso fere. Sou uma paisagem cinzenta e azul. Elevo-me na fonte seca e na luz fria.
Quero escrever esquálido e estrutural como o resultado de esquadros, compassos e agudos ângulos de estreito enigmático triângulo.
«Escrever» existe por si mesmo? Não. É apenas o reflexo de
uma coisa que pergunta. Eu trabalho com o inesperado. Escrevo
como escrevo sem saber como e por quê — é por fatalidade de
voz. O meu timbre sou eu. Escrever é uma indagação.
É assim: Será que estou me traindo? Será que estou desviando o curso de
um rio? Tenho que ter confiança nesse rio abundante. Ou será que
ponho uma barreira no curso de um rio? Tento abrir as comportas,
quero ver a água jorrar com ímpeto. Quero que cada frase deste livro seja um clímax.
Eu tenho que ter paciência pois os frutos serão surpreendentes.
Este é um livro silencioso. E fala, fala baixo.
Este é um livro fresco — recém-saído do nada. Ele é tocado ao
piano delicada e firmemente ao piano e todas as notas são límpidas e perfeitas, umas separadas das outras. Este livro é um pombo-
-correio. Eu escrevo para nada e para ninguém. Se alguém me ler
será por conta própria e auto-risco. Eu não faço literatura: eu apenas vivo ao correr do tempo.
O resultado fatal de eu viver é o ato de escrever. Há tantos anos me perdi de vista que hesito em procurar me encontrar. Estou com medo de começar. Existir me dá às vezes tal taquicardia. Eu tenho tanto medo de ser eu. Sou tão perigoso. Me deram um nome e me alienaram de mim.
Sinto que não estou escrevendo ainda. Pressinto e quero um linguajar mais fantasioso, mais exato, com maior arroubo, fazendo
espirais no ar.
Cada novo livro é uma viagem. Só que é uma viagem de olhos
vendados em mares nunca dantes revelados — a mordaça nos
olhos, o terror da escuridão é total. Quando sinto uma inspiração,
morro de medo porque sei que de novo vou viajar e sozinho num
mundo que me repele. Mas meus personagens não têm culpa disso
e eu os trato o melhor possível. Eles vêm de lugar nenhum. São a
inspiração. Inspiração não é loucura. É Deus. Meu problema é o
medo de ficar louco. Tenho que me controlar. Existem leis que regem a comunicação.
A impessoalidade é uma condição. A separatividade e a ignorância são o pecado num sentido geral. E a loucura é a tentação de ser totalmente o poder. As minhas limitações são a matéria-prima a ser trabalhada enquanto não se atinge o objetivo.
Eu vivo em carne viva, por isso procuro tanto dar pele grossa a
meus personagens. Só que não agüento e faço-os chorar à toa.
Raízes semoventes que não estão plantadas ou a raiz de um dente? Pois também eu solto as minhas amarras: mato o que me perturba e o bom e o ruim me perturbam, e vou definitivamente ao encontro de um mundo que está dentro de mim, eu que escrevo para
me livrar da carga difícil de uma pessoa ser ela mesma.
Em cada palavra pulsa um coração. Escrever é tal procura de íntima veracidade de vida. Vida que me perturba e deixa o meu próprio coração trêmulo sofrendo a incalculável dor que parece ser
necessária ao meu amadurecimento — amadurecimento? Até agora vivi sem ele!
É. Mas parece que chegou o instante de aceitar em cheio a misteriosa vida dos que um dia vão morrer. Tenho que começar por aceitar-me e não sentir o horror punitivo de cada vez que eu caio, pois quando eu caio a raça humana em mim também cai. Aceitar- -me plenamente? é uma violentação de minha vida. Cada mudança, cada projeto novo causa espanto: meu coração está espantado. É por isso que toda a minha palavra tem um coração onde circula sangue.
Tudo o que aqui escrevo é forjado no meu silêncio e na penumbra. Vejo pouco, ouço quase nada. Mergulho enfim em mim até o
nascedouro do espírito que me habita. Minha nascente é obscura.
Estou escrevendo porque não sei o que fazer de mim. Quer dizer:
não sei o que fazer com meu espírito. O corpo informa muito. Mas
eu desconheço as leis do espírito: ele vagueia. Meu pensamento,
com a enunciação das palavras mentalmente brotando, sem depois
eu falar ou escrever — esse meu pensamento de palavras é precedido por uma instantânea visão, sem palavras, do pensamento —
palavra que se seguirá, quase imediatamente — diferença espacial
de menos de um milímetro. Antes de pensar, pois, eu já pensei. Suponho que o compositor de uma sinfonia tem somente o «pensamento antes do pensamento», o que se vê nessa rapidíssima idéia
muda é pouco mais que uma atmosfera? Não. Na verdade é uma
atmosfera que, colorida já com o símbolo, me faz sentir o ar da atmosfera de onde vem tudo. O pré-pensamento é em preto e branco. O pensamento com palavras tem cores outras. O pré-pensamento é o pré-instante. O pré-pensamento é o passado imediato do
instante.
Pensar é a concretização, materialização do que se pré- -pensou. Na verdade o pré-pensar é o que nos guia, pois está intimamente ligado à minha muda inconsciência. O pré-pensar não é racional. É quase virgem
Clarice Lispector
in, Um Sopro de Vida
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