Recomeçar
atravessa fronteiras e épocas para nos falar de
perdas, coragem, segundas oportunidades e
reconstrução.
Este livro transporta-nos para Madrid dos finais do século, mais propriamente para o ano de 1999, mas em poucas páginas faz-nos atravessar o oceano, para os Estados Unidos, e deixa-nos em Santa Cecília, Califórnia, onde se desenrolará grande parte da sua ação. Será lá que aterrará Blanca Perea, que, num impulso, aceita “uma missão universitária” a milhares de quilómetros da sua cidade natal para fugir de uma vida matrimonial desfeita a qual, num repente, a deixou sem chão e sem norte. Com um trabalho enfadonho, entediante e desinteressante (ordenar e organizar o espólio de um professor universitário, seu conterrâneo e já falecido) e enfiada num minúsculo gabinete, quase sem comunicação com o exterior, Blanca tenta viver (ou talvez sobreviver) dia após dia, fazer o que tem a fazer, não dar descanso ao corpo para que depois possa deitar a cabeça na almofada e dormir para esquecer…
Contudo, por muito que lutemos contra a vida, por muito que tentemos construir defesas que nos permitam não voltar a sofrer, é impossível não trocar umas palavras com quem se cruza connosco todos os dias, não apreciar a beleza de um magnífico dia de sol, não sorrir perante uma turma de alunos entusiasmadíssimos por aprender mais sobre a língua e culturas espanholas e não baixar a guarda perante um convite quase irrecusável de uma colega que nos afaga com um sorriso e uns olhos cheios de compreensão. Blanca é apenas humana e, pouco a pouco, deixa de sentir os seus dias maioritariamente preenchidos por ressentimento, estupefação e dor e abre-os a novas experiências, a novas amizades e à convivência com papéis, apontamentos e textos que a fazem querer conhecer mais e melhor a vida pessoal e universitária do seu conterrâneo, Andrés Fontana.
Livro sobre sentimentos que certas personagens escondem por baixo de uma superfície aparentemente calma, mas com os quais elas têm de lidar quando se encontram sozinhas. A raiva e a frustração, a admissão e a reconciliação, são coisas pelas quais todos nós já passámos, e a meu ver é magnífica a forma como ela consegue transpor para o papel esta mistura de emoções.
Fala sobre o quanto custa recomeçar, deixar para trás o que era até então a nossa vida e ter que reestruturarmo-nos e começar de novo.
É um recomeço que é sempre lento, doloroso e feito passo a passo, mais a mais quando a sua protagonista é uma mulher madura, experiente, menos ingénua e menos otimista face ao futuro.
As vidas das três personagens principais ditam o andamento da história:
Blanca Perea, uma professora de 45 anos, com um bom curriculum e uma carreira consolidada, que está atualmente a passar por uma separação matrimonial complicada e decide aceitar um cargo de "arquivista" numa universidade nos EUA, para organizar o espólio de um falecido diretor daquela instituição, Andrés Fontana, que dedicou grande parte da sua vida à pesquisa das missões franciscanas fundadas na Califórnia.
Por fim, Daniel Carter, um professor renomado da Universidade da Califórnia, é o elo de ligação entre os dois primeiros, não só por ter sido aluno e amigo de Andrés Fontana, como por se ter tornado amigo de Blanca Perea.
EXCERTOS DO LIVRO:
"Às vezes a vida cai-nos aos pés com o peso e o frio de uma bola de chumbo"
"Tente não fazer o mesmo que os seus compatriotas...Respeite este povo. Não passe por nós sem parar para entender quem somos. Não se fique pela anedota, não nos julgue com simplicidade."
"Que a luz dos anos te sirva para veres mais nitidamente o teu caminho"
"Chegar a uma certa idade tem o seu lado positivo. Perdemos algumas coisas pelo caminho, mas ganhamos outras. Aprendemos a ver o mundo de outra maneira, e desenvolvemos sentimentos estranhos, como a compaixão. E a compaixão é querer ver os outros livres de sofrimento. Independentemente do sofrimento que nos possam ter causado. Sem prestar contas, sem olhar para trás. (...) Dizem que a compreensão é um sintoma de maturidade emocional; não é uma obrigação moral nem um sentimento que nasça da reflexão. É simplesmente um sentimento que chega, quando chega.
(...) Existem pessoas que não foram boa inspiração, e isso é difícil de perdoar, esquecer e de aceitar. A sua presença não nos irá ajudar a superar o passado, nem irá compensar o vazio dos anos de ausência. No entanto, apesar do que o passado nos tenha feito sofrer, todos temos muita coisa por que expressar a nossa gratidão. Agradecer por tudo o que nos ajuda a sermos felizes a cada dia. "
"Há coisas que têm sempre de ter um fim. Mesmo que seja doloroso. Não é bom deixar feridas abertas. O tempo, tudo cura mas, antes, é conveniente que nos reconciliemos com o passado, com o que se deixou para trás. (...) é preciso dar às coisas o fim de que precisam, mesmo que seja desolador, para que tudo acabe por se curar sem deixar cicatrizes."
" De uma maneira ou de outra, todos temos dívidas pendentes com o nosso passado."
"O facto de reatar velhos assuntos do passado, não significa que tenha ficado estagnado neles. Há muito tempo que deixei de viver agarrado à nostalgia do perdido; tenho bem delimitadas as fronteiras entre o hoje e o ontem. Os meus mortos estão há muito tempo enterrados e, ainda que se me parta a alma por defender a sua memória, eu não estou com eles. Estou entre os vivos, aqui e agora, contigo."
"Através deles entendi uma coisa tão simples, tão orgânica e elementar: a única coisa que o guiou para se afastar de mim fora a força de um amor justaposto que se atravessara no seu caminho como, talvez, me podia ter acontecido a mim. Um sentimento, uma paixão que o ultrapassa.
Apesar da sua inépcia para comigo, de tudo o que fora reprovável e censurável, e da dor que me causou, o amor alheio, perante as jogadas que o destino nos apresenta inesperadamente à frente, por vezes não se pode aplicar a razão. O cheiro alheio, o riso jovem, o roçar involuntário da pele. A razão a tentar refrear os sentimentos e estes, desenfreados, desobedientes, crescendo sem contenção.
Uma paixão muda, que não quer calar, soterrada perante o mundo. "
"Às vezes, a arrogância cega-nos e não temos consciência de como as coisas são elementares. Até que alguém nos põe diante dos olhos a simplicidade nua da realidade."
"A luz e a sombra da essência humana em duas mulheres diferentes dos pés à cabeça. A cara e a coroa. A que assume e avança, e a que rumina o ressentimento como uma pastilha elástica amarga que, passadas décadas, ainda tem sabor. As duas, cada qual à sua maneira, e salvaguardando as diferenças, tinham lutado no devido momento por um propósito semelhante: ver crescer os filhos, estar ao lado do seu pai e companheiro de vida, construir um lar onde a luz do sol entrasse pela manhã. No entanto, tínhamos escorregado as três, Darla, Rebecca e eu, e caído na lama num qualquer momento inesperado. Um dia, deixaram de nos amar às três. Perante o abandono e a incerteza, face ao desamor e à crueza irreversível da realidade, cada uma defendeu-se como pôde e batalhou com as armas que tinha ao seu alcance. Com boas ou más artes, com o que o intelecto, as vísceras ou o puro instinto de sobrevivência puseram á mão de cada uma. A distribuição de talentos foi sempre arbitrária, a ninguém foi dado a escolher.
Rebecca tivera a integridade moral para o superar.
Darla, por seu lado, nunca o conseguira. Como um pobre animal maltratado, refugiara-se na sua caverna sem nunca curar as suas feridas, confundindo a simplicidade da natureza humana com uma traição mesquinha ou um maquiavélico plano contra si. Sem assumir que o amor é volúvel, estranho e arbitrário, privado de compreensão e racionalidade. Movida, talvez, pelo medo das privações materiais, pelo medo da solidão; construindo fantasmas malévolos onde não os havia, para ter um rosto culpável contra quem descarregar a sua fúria, magoando-se a si própria e fazendo sofrer quem, conscientemente, nada teve a ver com o seu infortúnio."
"Para que saibas o que nos levou a ir para um país que não é o nosso: pôr terra pelo meio e lançarmo-nos sem rede para o desconhecido, sem previsão nem conhecimento do que iríamos encontrar. Converter-nos noutro, no que não pertence e, por isso, talvez um pouco mais livre. nada volta a ser igual ao que era. E começamos a escrever sobre a nossa vida, na solidão das noites, raspamos o fundo da memória, refletimos, reconciliamo-nos com o passado, reencontramo-nos connosco próprios, pomos em ordem as recordações, retalhos do tempo...escrever sobre o que se passa dentro e fora de nós, sobre as outras vidas que conhecemos, o que sentimos...
Acrescentar coração à escrita faz-nos refletir, aprofundar emoções, e ver a realidade sob outros ângulos.
Uma espécie de catarse que sai de dentro de nós."
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