Luís Francisco Ribeiro
Guadalupe é uma freira de ideias fortes.
Chegou à Síria antes da guerra civil
e viu de perto a região tornar-se um inferno.
Garante que
"a primavera árabe foi uma grande mentira".
Além da Síria, Guadalupe já esteve em países como
o Egipto, a Jordânia, a Tunísia ou a Palestina
A irmã Maria de Guadalupe Rodrigo, uma freira argentina que viveu durante quatros anos na Síria, escapou à morte por escassos minutos várias vezes. Enquanto viveu em Aleppo, viu um míssil cair a 50 metros de sua casa e habituou-se a dormir ao som das explosões constantes. “Quando uma vez fomos ao Líbano, na primeira noite lá foi difícil dormir, por causa do silêncio”, conta ao Observador. E explica que foi para a Síria porque a sua congregação — o Instituto do Verbo Encarnado — vai para “os lugares onde ninguém quer ir”.
Quando chegou à Síria, ainda antes do início da guerra civil, estava num país calmo. “Mais do que qualquer país do Médio Oriente”, sublinha. Teve de regressar, por motivos de saúde, mas ainda quer voltar à Síria. Entretanto, tem passado por vários países para contar o seu testemunho, que é uma história do Médio Oriente muito diferente daquela a que o Ocidente está habituado.
A religiosa defende que a primavera árabe foi “uma grande mentira”, e que não há, atualmente, “oposição moderada” nem “rebeldes sírios”. “A única defesa do povo é o exército nacional, do regime” de Bashar al-Assad, acrescenta.
Guadalupe esteve em Portugal a convite da fundação Ajuda à Igreja que Sofre (AIS), que apresentou a semana passada o relatório sobre a liberdade religiosa no mundo. Numa sala na parte de trás do altar-mor da igreja da Encarnação, no Chiado, em Lisboa, que já estava cheia para ouvir o seu testemunho, a irmã Guadalupe falou ao Observador sobre a sua vida em Aleppo, sobre a relação entre cristãos e muçulmanos na Síria e, sobretudo, sobre o conflito político, religioso e económico que o Médio Oriente atravessa.
Como é que uma freira como a irmã Guadalupe deixa a Argentina para acabar na Síria?
Porque sou missionária, pertenço a uma congregação que se chama Família Religiosa do Verbo Encarnado, uma congregação fundada na Argentina, que tem missionários em todo o mundo. Temos sacerdotes e irmãs, e temos missões em locais difíceis. O nosso fundador, o padre Carlos Buela, dizia sempre: “Temos de ir aos locais onde ninguém quer ir”. Claro que a Síria não é um lugar lindo para escolher para ir em missão, mas é por isso que queremos estar nesses lugares.
Os testemunhos que já tem dado um pouco por todo o mundo são absolutamente impressionantes. Fala da forma como se apanhavam pés e mãos nas ruas de Aleppo, depois de mais uma bomba, de forma como as pessoas se habituam à queda de mísseis… Sente que num local como a Síria se dá menos valor à vida humana?
O que é certo é que os grupos fundamentalistas espezinham a vida…
E no Ocidente damos menos valor às vidas do Médio Oriente?
Creio que se conhece pouco o que se passa, e quando acontece um atentado na Europa fala-se uma semana disso nos meios de comunicação, mas na Síria e no Iraque há mortos todos os dias. Todos os dias. Sobretudo cristãos, mas morrem todos os tipos de pessoas. Há cristãos que morrem de forma atroz, crucificados, enterrados vivos. Isso não vemos nos meios de comunicação.
Estava à espera do que encontrou ao chegar à Síria?
Não! Não, não, não! Eu fui para a Síria quando ainda era um país tranquilo, seguro, calmo, pacífico. Mais do que qualquer país do Médio Oriente.
Estava na Síria na altura das primaveras árabes…
Antes. Conheci a Síria assim durante muitos anos. Eu na altura estava mal de saúde e pedi para ir para a Síria, para a nossa comunidade em Aleppo, por ser uma sociedade muito tranquila, de boa convivência entre cristãos e muçulmanos.
Como viveu a primavera árabe na Síria?
A primavera árabe é uma invenção, artificial, que, para os árabes, não tem nada de primaveril. Foi uma coisa inventada a partir de fora, não foi uma revolta popular, nem começou nas ruas. Foi planeada num escritório, por gente de fato e gravata, ao detalhe. Fazia-se a primavera árabe, país após país, chegava-se à Síria, tirava-se o presidente, fazia-se uma guerra civil, manipulavam-se os meios de comunicação social para convencer o Ocidente da necessidade de apoiar a oposição. Tudo uma grande mentira.
E a vida mudou para as pessoas.
Sim. Para as pessoas, a guerra foi totalmente inesperada, não tinha sido algo preparado pelo povo. Nem é uma guerra em que participe o povo. A única participação do povo é com vítimas.
O seu trabalho na Síria também teve de mudar, calculo.
Claro. Antes, tínhamos uma paróquia, em que fazíamos trabalho pastoral, e tínhamos – ainda temos – uma residência para estudantes universitárias. Claro que, com a guerra, intensificou-se o apoio às famílias cristãs, sobretudo, mas também às não cristãs, também às muçulmanas, que ficaram sem nada, e precisavam do mínimo para comer, e ficaram sem casa. E depois era preciso o consolo e o apoio às famílias que enfrentam a morte.
Esse é um detalhe interessante, porque no Ocidente parece haver uma tendência para pensar apenas em muçulmanos quando se fala do Médio Oriente, mas também há cristãos e outras religiões. Como é esta convivência religiosa atualmente?
Bom, o Médio Oriente é terra cristã. O Islão depois invadiu estes países, e passou a ser maioria, pela força e pela violência em muitos casos. Na maioria dos países, os cristãos são minoria, e minoria perseguida, minoria discriminada, sem direitos. Na Síria era diferente, ainda é, porque não temos governo islâmico, temos um governo laico, não confessional. De alguma forma, isto favorecia a liberdade religiosa e a convivência entre cristãos e muçulmanos.
Como era o seu dia-a-dia nos últimos anos, numa Síria em guerra?
Estive durante quatro anos da guerra, na Síria. O dia-a-dia dependia muito da circunstância, de cada momento, porque os ataques são permanentes. Dia e noite. Vivíamos assim, dormíamos nas caves, no subsolo, mas tínhamos de sair sempre que era necessário, quando era necessário comprar coisas, visitar famílias, tratar de formalidades… Estávamos expostos a que pudesse acontecer qualquer coisa, à chegada da morte. É que os ataques dos rebeldes contra os bairros civis são permanentes.
Viu a morte todos os dias…
Sim, via gente a morrer todos os dias, e vi a morte a passar muito perto, e não me tocou por minutos.
O que aconteceu?
Eram coisas como estar numa loja a comprar qualquer coisa, muito rapidamente, e sair, e passados 10 minutos caem quatro bombas e desaparece tudo, morre toda a gente, nesse local onde estávamos.
Falávamos da sua vida diária na Síria.
Exatamente. Saber que morre gente todos os dias e que não há um único lugar seguro faz-nos aprender a conviver com a guerra.
É possível habituar-se a um cenário como esse?
Habituamo-nos, sim… Ao princípio, por exemplo, não conseguia dormir, por causa dos bombardeamentos. Mas é preciso dormir, para ter força, não podia estar quatro anos sem dormir. E conseguíamos, dormíamos mesmo com os bombardeamentos. E, quando uma vez fomos ao Líbano, na primeira noite lá, foi difícil dormir por causa do silêncio. Já estávamos habituados a este barulho permanente das explosões, dos tiros. É possível acostumar-se, e fazemos a vida quotidiana…
Não tinha medo?
Não, não tive medo, e sou muito medrosa. Muito medrosa mesmo. Antes de ir para a Síria, se me perguntassem se iria a um lugar de guerra, eu dizia que não, porque sou muito débil de saúde e tenho sempre muito medo, de qualquer coisa. Mas lá uma pessoa experimenta uma graça especial de Deus. Creio que é isso, não vejo outra explicação. Nunca tive medo, nunca me quis ir embora. E quero regressar lá.
E vai voltar?
Eu quero. Agora estou com a família na Argentina. Realmente, creio que participamos um pouco da graça que recebem os mártires. Não é fácil manter-se firme.
Qual foi a experiência mais difícil que viveu na Síria?
Uma das mais trágicas foi a queda de um míssil terra-terra a 50 metros do lugar onde vivemos. Causou mais de 400 mortos, muitos eram jovens universitários, porque nós vivemos na cidade universitária. E morreram muitos dos nossos jovens, muitos ficaram feridos. E muitos danos, na catedral, na nossa casa. Nós próprios salvámo-nos por uma questão de minutos.
Como se sentiu nesses momentos em que não morreu por uns minutos?
Percebemos a forma como Deus nos protege, a forma como cuida de nós…
E não protege os que morreram?
Sim, claro. Mas pensamos: “Se continuo viva, é porque tenho uma missão, e por isso sou útil aqui”. Continuar a viver, nestes momentos, significa poder continuar a ajudar. Até que a morte nos encontre.
Quando dá o seu testemunho junto de comunidades em países ocidentais, que mensagem é que quer passar?
Na Síria, é muito forte a experiência de dor, é muito forte a experiência de abandono. As pessoas dão-se conta de que estão abandonadas pelo Ocidente. Não digo pelos cristãos em particular, porque há muita gente que reza por eles, que os acompanha. Mas são abandonados pelas organizações internacionais, pelos governos, pelos que decidem esta guerra e que apoiam os rebeldes. O povo sente-se abandonado e traído. A experiência de dor é muito forte para eles.
Na guerra da Síria, fala-se muitas vezes do facto de haver três lados. O governo, os rebeldes, e o Estado Islâmico…
Rebeldes e Estado Islâmico são praticamente a mesma coisa. Têm o mesmo objetivo: contra o governo, contra os cristãos e contra os muçulmanos que não queiram adotar o fundamentalismo. Não há rebeldes sírios, não existe a oposição moderada. Só há dois lados nesta guerra, o que acontece é que são grupos distintos. Há o Estado Islâmico, a frente Al-Nusra, a Al-Qaeda, há muitos grupos distintos. Mas todos unificados por este mesmo objetivo, e atacando o povo.
De quem é que o povo sírio tem mais medo?
A única defesa do povo é o exército nacional, do regime. A única defesa em todos estes anos. As pessoas defendem-se com o seu próprio exército. Só têm medo dos rebeldes.
Sente que a imagem que o Ocidente tem da Síria é completamente diferente do que viveu?
Sim, é completamente distinto. E por isso é que digo que se sofre muito. As pessoas não conhecem esta manipulação, esta mentira. Mas, para terminar a ideia, além de ser muito forte a experiência de dor, é muito forte também a experiência de fé das pessoas.
Dos cristãos?
Claro, dos cristãos. São jovens, rapazes e raparigas, que estão decididos a morrer, da forma que for [passa com o polegar pelo pescoço, a simular uma decapitação], para não se converterem ao Islão, para não negarem Jesus Cristo. E não o dizem com medo ou em desespero. Dizem-no com muita honra: “Eu sou cristão e o céu não me vai deixar ficar mal”.
Também há jovens muçulmanos dispostos a morrer…
Mas não é a mesma coisa. Os jovens muçulmanos que se dispõem a morrer, fazem-no para matar muita gente. Isso não é martírio. Os cristãos morrem a defender a sua fé, por se manterem firmes na sua fé. Por viver a vida verdadeira. Não se pode comparar.
O que leva daqui quando (e se) regressar à Síria?
Creio que levo o consolo das orações de tanta gente. Tenho estado longe da Síria durante algum tempo, e escutar tanta gente, escutar crianças pequenas a dizer “todos os dias rezo pela paz na Síria” é muito consolador.
Sente esse envolvimento no Ocidente, mesmo, como defende, que não haja uma perceção do que realmente acontece?
Na verdade, sempre que convidam a dar o meu testemunho, é porque há interesse. Mas não é o comum na maioria das pessoas. Estar na Síria dá-nos a ideia de que a vida é curta, de que podemos morrer hoje, muda-nos o ambiente. E, quando morremos, tudo recomeça, no céu, e as coisas materiais estão em segundo lugar. Quando chego a países como os da Europa ou da América, sinto que toda a gente está entretida com as coisas materiais.
Vejo que anda com o terço, anda com o hábito, não tem vergonha de mostrar que é católica. Qual é a imagem de um cristão no Médio Oriente?
Na Síria, os muçulmanos gostam muito dos cristãos. Estão preocupados com a diminuição da presença cristã na Síria. Estão mais preocupados eles do que os ocidentais.
Disseram-me isto a mim:
“Os cristãos são quem mantém o nível académico nas nossas universidades, os cristãos são os cultos, os que estudaram, os cristãos mantêm o nível cultural, mantêm os valores que a nossa sociedade não tem, como o perdão”.
O Islão da Síria é um Islão moderado, muito aberto, tolerante, e valoriza a presença cristã.
Este é um conflito religioso?
Religioso e económico.
Apoiar os grupos rebeldes é uma questão económica.
João Francisco Gomes
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