quarta-feira, 15 de maio de 2019

VARIAÇÃO PRIMEIRA





Ao sol ardente, ao mar azul, ao vento que
lhes faz vibrar a pele, os deuses dão-se
numa nudez total de agreste juventude
que impudica se exibe e se deseja,
se acaso olhos humanos os espiam.
.
Promíscuos tombam num tropel de corpos,
de pernas, braços, bocas e cabelos,
ancas e mãos, de línguas e gemidos,
uivos de espasmo, seios e tremuras,
e sexo é tudo o que se entrega e tudo
o que num ritmo seguro arranca
sacões em que se ajusta mais ao fundo
e túrgido se escoa e recomeça.
Torcem-se os corpos, arfam e agitam-se,
soerguem-se e arqueiam-se e descaem,
e pouco a pouco vão ficando plácidos
e como que dormindo na difusa,
anónima e divina confusão final.
.
De súbito, levantam-se altíssimos
ao pé dos corpos que ainda jazem trémulos.
Mais outros se levantam, se recortam
na luz que irisa a negridão dos sexos.
As gargalhadas tinem pela praia clara
num cascalhar sereno da ressaca
lambendo a areia que, trazida, fica
como suspensa no limiar do vento.
.
Ao mar acorrem que espadanam breves,
enquanto um só dos deuses se demora
à beira de água e se espreguiça erguendo
ao alto os braços num curvar das ancas
sobre as retesas pernas que espraiada
a espuma molha pelos tornozelos.
Num grito atira-se e mergulha e segue
os outros que são pontos na distância,
ou sombras só de pequeninas vagas
quebrando-se, e ao longe, contra a luz.
.
Silvos ligeiros, lépidos, irónicos
alisam pela praia o que ficou dos corpos
— areia remexida, vagos moldes
de ancas e torsos, calcanhares e nucas,
e até gotas dispersas de vertido amor.
.
Promíscuo o amor dos deuses, se os espiam
olhares humanos, sequiosos, turvos,
e dissipado, violento, abrupto.
.
Apenas o tinir das gargalhadas
subsiste ainda, e na memória o vulto
do deus que se espreguiça à beira de água.


JORGE DE SENA
in, VARIAÇÕES SOBRE UM CORPO




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