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sábado, 29 de novembro de 2025

Levarei o Fogo Comigo

 

Foto de capa: 
Leïla Slimani em Paris, aos 18 anos. 
Foto do arquivo pessoal cedida pela editora Gallimard





O que fica de alguém 
quando deixa um lugar?


O título do livro ecoa uma promessa e uma herança: 
Uma descendente que recolhe o que ainda queima, fere, foi silenciado da sua história pessoal e coletiva, e que tem um peso que faz com que não volte.
Ela teme os objetos, as heranças, e desconfia de tudo o que se prende com o passado.

Assim, arrumou a infância e levou o que importava.

"Mia, vai e não voltes!
Não guardes forças para o regresso, e nada o mais longe que puderes.
Percebi tudo sabes, e vi tudo.
O que te fizeram sofrer e o que dirão de ti.
Deverás pensar como uma mulher a monte, minha filha, porque é a nostalgia, sempre, a perdição dos criminosos em fuga. Um aniversário, um enterro, a saudade do país onde se nasceu. A nostalgia fá-los regressar e arrependem-se. Não deves regressar a Ítaca, mas sim encontrar para ti uma ilha como a dos Lotófagos, uma ilha para esquecer o regresso, para nem sequer sentir vontade de regressar. 

Sim, as pessoas tentarão convencer-te.
Pensarás que terás alguma coisa para fazer aqui, que podes ser útil.
Mas, não acredites nisso!
Enfia cera nos ouvidos, amarra-te ao mastro, lembra-te do que te disse.
Não voltes!

Essas histórias de raízes não passam de uma maneira de te pregar ao chão, portanto não importa o passado, a casa, a herança, os objetos, as recordações.
Ateia um grande incêndio a tudo, e leva o fogo contigo!

Não te digo até um dia, minha querida, digo-te adeus.
Empurro-te do cimo da falésia, solto a corda e observo-te a nadar.

Meu Amor,
Não cedas no que toca à Liberdade.
Desconfia do calor da tua própria casa,"

A questão é: 
  1. Como manter a chama acesa? 
  2. O que é que recebemos e deixamos em herança? 
  3. Como nos incendiamos depois das cinzas?



O romance acompanha o crescimento de Mia e Inès, duas irmãs que, embora criadas no mesmo ambiente, seguem caminhos distintos. As diferenças entre elas servem como metáforas para o confronto entre tradição e modernidade, entre o peso da herança cultural marroquina e o desejo de emancipação individual. Slimani explora com sensibilidade as tensões familiares, as frustrações geracionais e os dilemas identitários que atravessam as personagens.


"Este livro é escrito não com sangue, mas com lava em ebulição. O que é que nos acontece quando já não temos sangue nas veias, mas apenas uma erupção imparável e incandescente? Leïla Slimani escreve com a fúria de alguém que escava um buraco com as mãos no jardim e que, muitos anos depois, sucumbe ao medo, ao medo paralisante que apaga a memória. Esta fúria e esta lava estão latentes. São sedimentos que resultam da sensação de se ser estrangeiro no seu país, de ser desconforme aos comportamentos de género socialmente aceites, a uma sensação de estranheza e despertença.

"Levarei o Fogo Comigo" é um livro de mulheres que são Ulisses, que inventam o seu próprio destino e que recusam ser a mítica Xerazade, que encantava tiranos e assim salvava a pele. Nesta "Odisseia" chamada "O País dos Outros", trilogia que se encerra com este volume, procura-se menos o regresso a casa, questiona-se: onde é casa? E entende-se casa, se não como sinónimo, como palavra-irmã de identidade, memória, integração.

Nas epígrafes, somos introduzidos a noções fundamentais: casa, raízes, incêndio. É um prenúncio de desgraça, que tem, como aqui se escreve, um cheiro particular. 
Consequentemente, coloca-nos uma pergunta: 
Como fazer o caminho para a frente, como prosseguir depois da hecatombe?"

Anabela Mota Ribeiro



"As pessoas como ela.
Havia, algures, pessoas que se lhe assemelhavam e ela forçava-se a esquecer que, se estavam unidas, era pela infelicidade. Pessoas como ela, e fingia ignorar a que se referia a mãe. Mia não se autorizava, nem em pensamentos, a dizer a palavra [lésbica], a qualificar-se.
Repetia para si própria: sou normal, e não fiz nada de mal.
A mãe queria que ela fosse feliz.
A mãe não acreditava na sua felicidade. Ela tem medo, pensava Mia, que eu seja estranha, travesti, sidosa, marginal. Preferia mil vezes que eu fosse conformista e banal.
Ama-me, repetia Mia para dentro, mas amar não tem nada que ver com palavras.
Amar era não fazer perguntas, não abrir os armários que o outro tivera o cuidado de fechar à chave. Não teimar em desenterrar os segredos.
Amar era guardar silêncio, juntos, deixar pairar perguntas sem respostas e aperceber-se de que isso não tinha importância nenhuma.

Amar e saber eram duas coisas muito diferentes."

O retrato de Marrocos nos anos 80 é rico e crítico. 
A autora não se furta a abordar temas delicados como o islamismo, o extremismo, a repressão política e a liberdade de expressão. 
A pergunta “Seria Marrocos uma verdadeira democracia?” ecoa ao longo do texto, revelando o desencanto de quem vive entre fronteiras físicas e simbólicas. 

Mia e Inès nasceram em Marrocos na década de 80, num país dividido entre o desejo de modernidade e o medo de perder a sua identidade. Enfrentam o preconceito e o desprezo, mas alimentam-se do fôlego que já havia movido as gerações anteriores das mulheres da família, a avó Mathilde, a mãe Aicha e a tia Selma. 

"Para uma mulher, envelhecer era a melhor vingança de todas, porque finalmente as pessoas a respeitavam.
Davam-lhe um beijo no ombro, e abençoavam-na.
Assim que os seios murchavam, o sexo de fechava, o rosto se sulcava de rugas e preocupações, finalmente, os outros aceitavam levar a mulher a sério. No crepúsculo da vida, acabavam por reconhecer que sim, ela tinha dado muito, tinha precisado de resistência e ternura para que os filhos crescessem e tivessem eles próprios filhos. A idade conferia-lhe o poder que sempre lhe faltara, o respeito pelo qual aspirava. 
As velhas podiam ser tiranas, autocratas, soberanas absolutas, podiam usar a bengala para bater e ralhar, gritar, reclamar, e ninguém se atrevia a dizer nada."


"Sempre detestei a ideia de traçar uma linha e dividir o mundo a preto e branco, de um lado as mulheres e do outro os homens. Ou dizer que o patriarcado é os homens no topo e as mulheres na base. A vida é muito mais complexa. Conheço mulheres que são muito patriarcais e conheço homens que foram destruídos pelo patriarcado. Tentei neste livro ser mais subtil e mostrar, através da personagem de Mia, uma mulher que, quando é jovem, despreza as mulheres e a feminilidade."

Leïla Slimani

"Quando era criança, não queria ser mulher. Odiava as mulheres. 
A vida das mulheres é muito trivial e pouco interessante: Elas passam o dia a falar sobre o preço das cenouras e das batatas, só querem ir ao mercado e tratar do jantar e estão sempre a perguntar-me pelos trabalhos de casa. 
O meu pai nem sequer entra na cozinha. É tão livre e tão egoísta. 
Quero ser egoísta e livre como o meu pai." 

A Mia pensa que, para ser livre, tem de ser um homem. 
Ao mesmo tempo, Mia encarna um pouco a masculinidade tóxica, porque é bastante violenta com as mulheres e aceita coisas horríveis da parte dos seus amigos homens, que fazem muitas piadas e vêem filmes pornográficos. 

Sim, as mulheres preocupam-se com o preço das cenouras e das batatas, mas estão tão vivas, profundamente enraizadas. Estão cá e, aconteça o que acontecer, adaptam-se. 
Não se preocupam com o progresso porque elas são o progresso. 
Estão no presente e estão no futuro. 

Os homens, falam e falam e falam...têm muitas teorias sobre tudo. 
As mulheres não falam assim tanto. Elas agem.


A memória, tema recorrente na obra, é tratada como um fio condutor entre gerações. A autora questiona o que resta da identidade quando a memória se esvai, e como o exílio — seja geográfico ou emocional — molda a forma como nos vemos e somos vistos.

É uma reflexão que explora o contraste entre Marrocos e os estados ocidentalizados, onde a liberdade parece mais tangível, mas também mais complexa. Slimani não idealiza o Ocidente, mas usa-o como contraponto para explorar o exílio, a perda de raízes e a reconstrução da identidade.


"Podemos amar um país que não nos ama?
Podemos ser, ao mesmo tempo, daqui e de lá?

Para que servia tentar saber qual era o meu lugar, qual era o meu país, quando eu nem sequer sabia quem era?
Que quer dizer "identidade" quando perdemos a memória?
Não a memória dos povos, essa pouco me importava.
Mas sim, as histórias que a minha avó me contava, as fábulas que o meu pai inventava, esses íntimos "era uma vez" que constituem quem eu sou e com os quais cubro as paredes.

Quando me perguntam de onde eu sou, nunca sei o que dizer, como o balbuciar de um gago tentando pronunciar uma palavra e que, exausto, acaba por desistir.
Tal como o meu pai, faço-me passar pelo que não sou, tornei-me a minha própria falsária, cópia de má qualidade de um quadro de mestre, falso bilhete que nada vale, a não ser para os ingénuos que merecem ser roubados."


Esta trilogia, que começou com O País dos Outros, depois Vejam Como Dançamos e, por fim, Levarei o Fogo Comigo, estes 3 livros são inspirados na vida da autora e na sua família. É a história dos seus avós, dos seus pais, a sua história. Esta trilogia é sobre família e é sobretudo sobre as mulheres, e sobre a ideia que as mulheres têm dos homens. Mas é também sobre identidade, emigração, sentirmo-nos estrangeiros - seja uma europeia em Marrocos, seja uma marroquina na Europa. E é sobre o que levamos quando partimos e aquilo que não podemos, ou não conseguimos ou não queremos, deixar para trás.

"Este livro não é só sobre viver", diz Leïla Slimani sobre "Levarei o Fogo Comigo". 
"Viver o nosso país, viver a nossa cultura para chegar a um novo mundo. Queria falar sobre o regresso. Regressar: gosto muito deste verbo português. É difícil e melancólico. É impossível regressar. Nunca se regressa, pois a pessoa que regressa não é já a mesma. O país para onde se regressa mudou enquanto estivemos fora. 
Quando Ulisses chega a Ítaca, no final da sua odisseia, depois de inúmeras aventuras, de tantos sofrimentos, ninguém o reconhece. Só a ama, já muito velha, e o cão dão sinal de que é ele. Eu passei pelo mesmo. À chegada, deparamo-nos com uma emoção muito forte. É o nosso país, é a cor do céu, a luz, o cheiro das coisas, a língua. Ao mesmo tempo, as pessoas olham para nós e pensam que somos turistas, perguntam se queremos uma visita guiada. Sentimos que há ali qualquer coisa que se desfez para sempre. Queria falar sobre esta mágoa de não ser possível voltar. Sempre me senti uma estranha.

Achava que não pertencia totalmente ao meu país, Marrocos, onde nasci e cresci. Provinha de uma família muito diversa, original e marginal na maneira de viver. A minha avó era da Alsácia, adorava beber vinho branco e comer salsichas durante o Ramadão. O meu pai, embora sendo muçulmano, nunca praticou o Islão. E eu não sabia nada sobre o passado do meu pai. Nunca tinha visto uma fotografia do meu pai em criança. Ele vinha de uma família pobre e frequentou escolas colonizadas. Foi muito influenciado pela cultura ocidental. Era uma espécie de Grande Gatsby, reinventou-se. A minha mãe foi criada em Meknès por uma mãe cristã e um pai muçulmano. As pessoas olhavam para nós com a sensação de que não pertencíamos ali. Éramos demasiado franceses, demasiado ocidentais, demasiado livres. Dávamos imensas festas onde havia álcool e os meus pais eram feministas. Não espanta que sempre me tenha sentido uma forasteira.

Chegamos a um país e tudo é diferente, fisicamente diferente. A imigração não é algo abstracto. Tem directamente a ver com o corpo. E é por isso que escrevo sempre sobre o corpo. O clima não é o mesmo, a comida não é a mesma, a forma como as pessoas se vestem não é a mesma. Foi muito violento chegar a França nos anos 90 do século passado. As pessoas eram bastante racistas e diziam coisas sobre os árabes sem sequer pensarem que podiam fazer-nos sentir vergonha ou tristeza.

Sou uma nómada. Não sei onde é o meu lugar. A minha casa é o corpo das pessoas que amo. Os meus filhos são a minha casa, o meu marido, os meus amigos, a minha família. Não é bem um sítio. A literatura também é a minha casa. Eu habito os livros, habito a ficção.

Por outro lado, não me identifico minimamente com a forma como as pessoas e a política que nos rodeiam falam de raízes, de identidade. Tentam definir uma identidade, dizem-nos que temos de ser assim ou assado. Não é sobre quem somos: o que importa é o que fazemos, o modo como agimos. 
Acho ridículo dizer: “tenho orgulho em ser desta nacionalidade ou daquela”. Orgulhem-se de serem boas pessoas. Não se orgulhem de ser ganeses, portugueses, franceses ou ingleses, se forem más pessoas. Isso é uma estupidez.

É apenas a minha história e não quero passar a minha vida inteira a pedir desculpa por ela."

"Quanto mais envelheço, mais me sinto frágil, vulnerável. 
Mas não o encaro como fraqueza. 
O que sinto é que agora posso partilhar a minha vulnerabilidade com as outras pessoas. 
Quando somos jovens, não queremos ser vulneráveis. Queremos ser fortes, sair e curtir, queremos que as pessoas nos amem e admirem. 
Agora quero olhar para as pessoas e dizer: também tens medo?"

Leïla Slimani


Leïla Slimani nasceu em Rabat em 1981. 
Recebeu o prestigiado prémio Goncourt aos 35 anos. 
Vendeu mais de um milhão de livros no mundo todo. 
Vive desde há quatro anos em Lisboa.




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